Artes

Sonia Lins

O avô gostava de música e de jogar lança-perfume nas pernas da avó. Sentado em poltrona na sala de espera, ligava a vitrola e, marcando o compasso, mandava netos dançarem, ensaiando cantar. À noite, estalando vinte e oito degraus de madeira, que o levavam ao nosso quarto, chegava para contar estórias. Subíamos em cima dele para escutá-las, misturadas às frases em latim saídas de boca dessalivada, cheia de dentes fortes e amarelos, escovados após cada refeição. Contava de incestos, cisnes engravidando mulheres, água que Tântalo não bebia, cavalos aéreos depressurizados, homens se transformando em porcos por haverem dormido com sereias; estórias contadas com o dedo em riste, o que nos fazia acreditar em sua veracidade. Dormíamos e sonhávamos estar o cavalo de Tróia roncando e galopando dentro de nossas barrigas. Ao amanhecer saíamos da cama procurando avô e esperávamos que saísse do banho onde estivera mergulhado desde o primeiro canto do galo; queríamos ver seus dedos enrugados pela demorada permanência na água, levar à boca a colher de mingau preparado pela avó sempre de penhoar.

Avô procurava sol de jardim para virar criança com os netos. Jogava moedas no chão e nos precipitávamos para apanha-las e se brigávamos, gargalhava o avô sacudindo na barriga listas azuis do pijama cinza. Olhava para Lygia, cuja falta de leite de mãe não permitia atingir o tamanho dos outros, e dizia ser ela filha de gata rajada, parida no bueiro da casa. Lygia chorava, o avô ria, insistindo aos gritos na metáfora até calor acabar. Lygia roía as unhas e à noite sonambulava procurando mãe. Avô e avó enchiam o vagão de bagagem de volta ao Rio e o adeus sacudido pelas mãos de ambos era alegre, sabiam eles e nós também que voltariam no ano seguinte, a avó com as agulhas coloridas de tricot, o avô com estórias que ficavam borborinhando nos ouvidos nossos, mexendo com miolos de Lygia:

"Nunca pensei que tivesse me apropriado de tantos monstros graças a toda mitologia que nos foi contada por vovô Lins: estou com sintomas incríveis, saem formas dos buracos do meu corpo e se tornam povos terríveis ou grandes aranhas negras. É incrivelmente belo o processo: abri meu corpo com as mãos em forma de concha em todos os pontos capitais. Depois que encontrei a serpente e a águia, vivo comendo frangos que preparado com uma tesão magistral."

Carta de Lygia para Sonia, Paris, 24 de Maio de 1973.