A galinhagata

Sonia Lins

Era uma galinhagata. Com o bico alisava as penas e limpava as unhas do pé. Com a língua lavava o rosto, untando-o com creme. Cheirava a asseio. Havia as horas certas para deitar ovos, antecipados sempre pelo mesmo esforço medido e precedidos pelo igual número de cocorocós cantados no mesmo tom. Luzia os óculos sobre as agulhas de tricô que como antenas se movimentavam. Crescia-lhe no colo o trabalho num aumento de células ininterrupto. Os olhos azuis sobre ele se fixavam e a mente como 1 soldado marchava, 1-2-1-2-1-2, e pintas iam-lhe nascendo pelos braços. Pela manhã o bico se ocuparia delas, procurando extirpá-las. Outras, porém as sucediam, irmãs em tamanho, primas na forma, parentes na cor. A língua de gato umedecia-as amolecendo-as numa persistência de borracha, querendo apaga-las. Já haviam subido até o cotovelo e os ombros róseos sentiam-se ameaçados. A invasão chegaria até eles hipodermicamente e cada vez se tornava mais carijó a galinha, contudo em seus olhos azuis era felina em todas as suas dobras.

A voz saia-lhe fina e incontida. Notava-se então que alto era o seu busto e nádegas inexistentes. Talvez tivesse até uma certa dificuldade em sentar-se, talvez por isso trabalhasse tanto. O pano nas suas mãos era 1 fantasma que nos móveis roçava afim de torná-los limpos e pintas iam, subindo pelos pulsos, pardas. As das unhas eram brancas.

O cabelo branco não lhe dava impressão de idade e sim de limpeza. Parecia antes que com ele nascera, aliás ela toda nascera como estava agora, os mesmos brincos o mesmo estampo.

O que a fizera obcecada? Tocara violino em pé dentro de 1 barco, os cabelos escorrendo-lhe pela gola à marinheira. Sorrira com os mesmos cabelos agora eriçados, encostados as orelhas de 1 rapaz e isso durara apenas o tempo necessário para baterem o instantâneo. Daí para cá era ciscar: a casa para que se mantivesse limpa e com o bico remexia pensamentos, procurando o que não havia sido recebido. Despendera os dotes sem desperdiçá-los e ela, que era a ordem sem ser o progresso, considerava-os perdidos. Sofria, portanto de uma lesão a qual com o próprio bico jamais conseguiria cerzir. Com ele levantava e apascentava as cenas e as lágrimas que chorava eram grossas como suspiros, mas os ovos eram impelidos e ela os botava a todos do mesmo tamanho, e no seu ventre o tricô crescia. Esguichava-lhe fácil o riso e gata branca que era, cacarejava para o tempo ganhar e as pintinhas alvoroçadas escondiam-se na carne dos braços para em seguida reaparecerem mais perto das que do pescoço desciam.