Solidão

Sonia Lins

Escuros eram os móveis da casa. Na mesa holandesa, junto aos guardanapos, havia 1 forro plástico guardado. Ao puxar a gaveta para fora, tinha-se medo de ver uma barata passar rente às mãos. Era uma gaveta feliz, não a arrumavam nunca. Ainda na sala de jantar, 1 lustre que devia ser substituído pendia do teto como 1 testículo pouco desenvolvido e no quarto de dormir, uma cama, ostentava 4 colunas de laranjas negras empilhadas. Como pálpebras abriam-se as janelas pela manhã e com 1 raio de sol, penetravam no quarto, pares de olhos. Era estreita a rua e os edifícios encaravam-se num duelo.

Ainda dentro de casa, como 1 rio navegado, havia 1 corredor marrom onde portas desembocavam. A primeira era a do quarto de hóspede e estava fechada. Com certeza mudavam de roupa. A outra pertencia ao quarto das crianças. Não tinha número certo. Eram 2, pensando bem eram 3, dias havia que eram 5 e de uma vez chegaram a ser 7. Estavam fora e as colchas espreguiçavam-se sobre as camas.

Uma das empregadas estava na iminência de ser mandada embora, não porque comesse muito, suspirava demais. Adiada era essa providência, as horas passavam rápidas e percebia-se no tempo apenas a alternativa do claro e escuro.

A cozinha era recheada de falas e os azulejos de suas paredes eram espelhos que tomavam parte em todos os diálogos e risadas.

A hóspede abrira a porta do quarto. Era preta, e sentada na cama calçava uma meia desenrolando-a em ascensão pela perna grossa. Antes que atingisse o joelho, torceu-a num nó e ela aí se aquietou. Queria ser pura e é compreensível dado a pureza ser simbolizada pela cor branca. Então eram puros os seus dentes e dentro dos seus lábios quando ela os mostrava, rodeados pelo pardo da pele, atraíam olhares que neles se fixavam como se fossem fruta fresca e doce. Ergueu a outra perna, cruzando-a sobre a que já estava calçada e pensando, para baixo enrolava a meia que devia ser substituída, deixando em liberdade pequenos cabelos erguidos na canela. Livres também estavam seus pensamentos e como uma aureola mantinham-se em torno do rapaz que ontem lhe buzinara os seios. Se culpa houve de sua parte neste gesto, lembrava-se apenas de havê-los soerguidos dentro do sutiã. Novamente estagnou a meia que subia abaixo do joelho, onde uma cintura já se fazia marcar. Ergueu-se. Seu corpo mesmo vestido lembrava uma moringa de barro. A ideia de se confessar amendoou-lhe os olhos, impossível era deixar de considerar o padre 1 homem. Passou a mão pelo buço onde havia gotas de suor. Estava quente, em volta havia ruídos de construção. Desceu. Na rua o sol fazia germinar edifícios em fatias de terrenos. Dirigiu-se à igreja costurara desde os 7 anos e de tanto lidar com linhas, seus braços obesos adquiriram movimentos de barbatanas. Suas mãos, como a dos anfíbios, voltaram-se para fora e os gestos tornavam-se felinos devido ao comprimento das unhas. Era uma apascentadora de pregas.

Costurara desde os 7 anos e de tanto lidar com linha, seus braços obesos adquiriram movimentos de barbatanas. Suas mãos, como a dos anfíbios, voltaram-se para fora e os gestos tornavam-se felinos devido ao comprimento das unhas. Era uma apascentadora de pregas.

À noite vinham os sonhos habitar-lhe o corpo. O sexo desperto, como gérbera ao sol, uma a uma desdobrava com lentidão as suas pétalas, para depois, num estremecimento, jorrá-las todas por terra.

Ergueu os olhos para Deus. Não pecara durante a noite, apenas acontecia cair em armadilhas. E juntamente com a oração que seus lábios acariciavam, evolava-se de seus cabelos, um cheiro de cabeça.

Sobre ela, aglomerados num vitral, os apóstolos coloridos a encaravam.

São 12, pensou, e os seios arrochados passaram a lhe incomodar, no altar, o padre cansado, sem o auxílio do sacristão, conduzia o grande livro para o outro lado. Também ela precisava passar para o outro lado, onde o grande chapéu (de freira) a aguardava, mas preferia o tórrido Equador sem jamais se resolver por qualquer dos meridianos.

Uma aragem fresca empurrava-a pelos braços e içando o véu, dirigiu-se ao confessionário.

Desceu os degraus do adro e o sol que a esperava abocanhou-a na nunca. Pela mão única escoavam velozes bicicletas impelidas por pernas de homens que assobiavam. Ao tentar atravessar, vozes alertaram-na. Lera que o mundo era uma grande roda. De fato vira-o rodeado pelos bichos zodiacais, todos eles de boca aberta. Girava e certamente fazia ruído, mas o que ela escutava agora era o barulho do bonde que sobre trilhos esquiava.

Um automóvel raspou seu cromo no estampado de sua saia e 1 senhor de cabelo brancos convidou-a a subir. Largou o sol a sua nunca despida quando ela se inclinou para se acomodar dentro do carro. Ao entrar, mais tarde, a hóspede dirigiu-se para o seu quarto e manteve a porta aberta. Seus cabelos hirtos em alguns sítios, mostravam um desalinho rebelde. O corpo pesava-lhe e por isto sentou-se na cama.

Na cozinha uma torneira fora aberta, e depois por contágio, todas as outras. O rio que vinha de longe quando escapava do metal amarelado das torneiras, ria, e antes que fosse tragado pelo sugadouro, perdigotava os pescoços das criadas, refrescando-as. Na área, os lençóis estendidos esperavam que a água os deixasse, empapando-lhes as pontas até que caíssem sobre o ladrilho.

Assim como a terra conserva em camadas espécies de fósseis, também o ar, em seus múltiplos degraus, conserva lembranças por nós enterradas. Sobre o ladrilho estava estendida a lembrança do cachorro dado, arfando, sua boca aberta, a língua ralando sobre o branco de seus dentes em ponta. Se ele houvesse se olhado no espelho, certamente tê-la-ia comido, tal era a sua semelhança com um presunto. Dias havia em que ele cheirava, e a cozinheira suspirava, aconselhando que o castrassem. Agora tudo isto pertencia a outro tempo, mas no seu quarto a hóspede continuava a escutar suspiros brotados na cozinha. Seus dedos compridos e de pregas apascentadores, acomodaram as mechas do cabelo. Seus olhos parados desviaram do quadro onde estiveram pousados e através das varetas da veneziana, vislumbrou no prédio erguido defronte 1 rapaz que fumava à janela. Cruzou as pernas e pôs-se a descer as meias, enrolando-as.

Sobre ela o teto sacudiu-se com violência. Eram os vizinhos de cima que viviam.