O artista plástico Luciano Figueiredo chegara de uma temporada em Londres, quando seu amigo Waly Salomão lhe falou com entusiasmo sobre Sonia Lins. Waly, então dono da editora Pedra Q Ronca, foi o primeiro a se interessar por “Baticum”, de Sonia, sobre a infância e juventude em Belo Horizonte, sua terra natal, e acabou por publicá-lo em 1978.
A partir de então, Luciano Figueiredo passou a acompanhar a produção de Sonia Lins, tanto na literatura, quanto nas artes visuais. No texto abaixo, escrito especialmente para o lançamento do Museu Virtual Sonia Lins, ele faz considerações sobre o processo de criação e a importância da artista para o panorama da arte contemporânea.
Sonia Lins: gestação e criação
A arte é uma atividade humana que não segue normas convencionais, e os artistas, em sua grande maioria, constroem suas obras e trajetórias de maneiras afins ou imprevisíveis uns aos outros; cada um com suas inclinações, predileções e formas de iniciação acadêmicas ou não. Entretanto, têm muitas coisas em comum que fazem parte do que irá lhes permitir carreira e reconhecimento: escolha de técnicas, materiais de trabalho, primeiros passos, exercícios de ateliê, exposições, apoio da crítica de arte, imprensa, galerias, mercado, competições em salões, bienais, instituições, profissionalização, etc. Tudo isso para conseguir afirmar a expressão individual no chamado “lugar ao sol” ou mesmo uma proximidade a ele. Assim, na maioria das vezes, acontece a formação de uma carreira artística em que a luta pela expressão é travada em inevitável embate que o artista enfrenta consigo mesmo, com a sociedade e com a cultura em que vive. O artista, se quiser, pode tudo aprender por si próprio e em contato com obras com as quais se identifica e que admira.
A obra de arte não é um objeto utilitário e nem tem lugar no mundo. O artista não possui um papel ou função específica no mundo, mas, paradoxalmente não pode dele prescindir.
O reconhecimento público, como sabemos, é o que legitima para a posteridade a aventura da expressão espiritual de qualquer artista. Alguns podem se tornar célebres em vida, porém, só com o passar do tempo e quando institucionalizadas suas obras – de todos os estilos e tendências –, é que são acolhidos em museus e ingressam na história da arte.
Para entendermos a forma de expressão de uma artista como Sonia Lins devemos inicialmente salientar que a artista construiu sua obra literária e plástica de maneira sui generis e aos poucos, pois que em sua juventude em Minas Gerais nunca manifestou qualquer inclinação para as artes visuais, mas, desde cedo foi uma leitora dos clássicos e interessava-lhe a literatura, o casamento, a família, seus filhos Sérgio e Kiko e a vida rural.
Somente em 1950, durante sua estada em Paris com a irmã Lygia Clark, teve despertada, sem pretensões, a curiosidade de desenhar e colorir em folhas de papel. Ganha elogios do artista e professor Dobrinsky que, surpreso com uma série de desenhos de Sonia, decide incluí-los em uma exposição de novos artistas. Nem por isso, ela dá seguimento à atividade de pintora e segue sua vida sempre rica em outras vivências e interesses: carpe diem, ousamos ainda evocar a famosa expressão do poeta e filósofo de Roma, Horácio, que quer dizer “aproveitar o dia”, “desfrutar da vida o máximo possível”.
Sonia Lins escrevia para si e não mostrava aos seus muitos amigos intelectuais e figuras importantes do grand monde ou da chamada intelligentsia do Rio de Janeiro da época. Circulava entre artistas e políticos sem demonstrar qualquer ambição em publicar o que solitariamente escrevia e guardava. Apenas a partir de 1959 seus textos começam a ser publicados no famoso Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, e ali já se percebia o espírito e a forma de escrita que lhe interessava: prosa e verso livre. Publica também alguns poemas (em português mesmo) na revista de arte Signals Bulletin, editada pelo crítico Guy Brett para a Signals Gallery de Londres que já na época acolhia nomes importantes da vanguarda brasileira como Sérgio Camargo, Lygia Clark, Hélio Oiticica e Mira Schendel. Como podemos constatar o début de Sonia Lins se dá no epicentro do movimento de vanguarda brasileiro e em seguida surge num jornal também de vanguarda na Inglaterra.
O Brasil viveu nesse período seu mais acirrado clima vanguardista nas célebres polêmicas do concretismo em São Paulo e do neoconcretismo do Rio de Janeiro. Fica evidente no estilo e no título de seu primeiro texto no suplemento do Jornal do Brasil – “Prosa concreta” –, que Sonia não só participava da novidade artística que ali emergia mas também a acompanhava.
Podemos, então, afirmar que a origem de tudo que veio a produzir e publicar cerca de 20 anos depois está na sua relação com o texto, com a palavra e com os escritos que engavetara durante muito tempo e que só seriam publicados pela editora Pedra Q Ronca do poeta Waly Salomão em 1978. Neles armazenara seus sentimentos, suas vivências de infância e juventude em Belo Horizonte. Tudo de uma época pessoal resumia-se de forma criativamente modificada no livro que intitulou Baticum e que formalmente tem uma diagramação muito ousada por ela mesma concebida, na qual se percebe o quanto os experimentos espaciais com o texto já eram absorvidos e transformados pela autora.
Baticum recebe nada menos que a apreciação do grande Carlos Drummond de Andrade que lhe escreve a seguinte mensagem:
Prezada Sonia Lins,
Curti muito a Belo Horizonte do meu tempo através de Baticum, que fala tanto à nossa sensibilidade mineira, resistente a todas as influências e transformações cariocas. Quantas figuras e situações apareceram de novo na trama que você teceu curiosamente no seu livro difícil de classificar, instintivo, nostálgico, irônico e cheio de emoção! A cidade ganhou mais um documentário impressionista, com essas páginas que eu li com grande prazer.
E pelo prazer da leitura, aí vai o abraço de agradecimento de
Carlos Drummond de Andrade
Assim aparece o elogio do poeta no livro de Marcel Souto Maior, Se é para brincar eu também gosto –, um perfil biográfico de Sonia Lins (Casa da Palavra, 2006).
Logo em seguida a Baticum, Sonia concebe e executa com a mistura de técnicas como colagens, desenhos e pinturas o seu Livro da árvore, um libelo precursor de consciência e alerta ecológico sobre o desmatamento de árvores de nossas florestas. É um livro todo feito em pranchas soltas que permite ao leitor manusear quase que aleatoriamente o lirismo e as dramáticas imagens de devastações.
Depois de Livro da árvore suas criações nos desconcertam mais e mais pelo seu espírito irreverente e anárquico: o guarda-chuva em forma de morcego que lhe surgiu ao ver um mendigo na chuva numa rua de Paris, o rolo de papel higiênico com imagens e mensagens impressas, a série de 600 fotografias de umbigos humanos fotografados a seu pedido por Bel Pedrosa, a instalação Se é para brincar eu também gosto exibida em 2002 no Museu Nacional de Belas Artes com apresentação mais uma vez do crítico inglês Guy Brett, e seu derradeiro projeto intitulado Brasil passado a sujo, no Centro Cultural Correios em 2003 mostrado em diferentes suportes e ambientes com proposições sensoriais, vídeos e objetos, projeções.
Essa mescla de expressões em suportes tão variados e mais os seus sete livros – Baticum (1978), Livro da árvore (1984), Almanaque abre-te sésamo (1994), És tudo (2000), Eu (2000), O tempo no tempo (2000) e Livro das dessabedorias (2003) – constituem o legado artístico e literário de uma figura extraordinária e imprescindível da arte brasileira, e mais um exemplo contundente do caráter experimental e livre de nossas conquistas artísticas e culturais.
Seu acervo de obras e de documentos é extremamente significante no panorama de nossa arte contemporânea. Nosso dever é saber inseri-lo em nossas instituições, museus e centros de estudo de maneira urgente e irreversível.
Luciano Figueiredo
Rio de Janeiro | Agosto de 2014
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