Claudia Fares*
Sonia Lins nasceu em abril de 1919 em Belo Horizonte com o destino de ser artesã da palavra e da memória.
Seu trabalho é um raro exemplo da confluência do talento e da vocação. Talento para flagrar a palavra e vocação para persegui-la, colocar em evidência o que ela define, desvendar o que ela encobre e não esgota, quebrá-la e com seus cacos compor outras.
De temperamento inquieto, Sonia Lins desde cedo encontrou no tricô uma maneira de se apaziguar. Esta prática na confecção de teias pode ter sido o solo propiciador para que se cumprisse seu destino de contar e recontar, de fazer, desfazer e refazer, de lembrar, esquecer e relembrar. Sonia adestrou-se neste moto contínuo, adotou-o como território e, com isto, nos presenteia com textos que são gestos. Gestos de concisão, de insuportável lucidez e beleza.
Seus textos, crônicas e contos tornaram-se conhecidos nos anos 50, quando passou a publica-los no suplemento dominical do Jornal do Brasil. Na mesma época expôs, em Paris, seu primeiro trabalho: um guache inspirado em uma canção que falava de uma formiga de 18 metros...
Muito a propósito chamou seu primeiro livro de Baticum (1978), ritmo sintético e essencial da perpetuação da vida. Livro de memórias de sua infância em Belo Horizonte, memórias da cidade recém-fundada que guardam ainda o frescor dos jasmins do jardim da casa vizinha à casa paterna. Sonia parece escrever com "uma câmera engastada nos olhos" deixando aparecer o que é, livrando-se dos adjetivos e advérbios, dando lugar aos nomes e às ações. Mais que isto, deixando-se reger por um tempo que tudo urde. Tempo em que "não existia pedestre e todos caminhavam", tempo em que era possível "chover tâmara à tarde". Tempo do coletivo que permeia o individual, tornando-o instrumento de relato de uma história interminável desdobrada em pequenos episódios, retalhos de lembranças, cintilações do cotidiano.
Nesta dinâmica tenaz de descoberta de sentidos surgem novas sílabas, destacam-se letras, instaurando-se um movimento gráfico que cria formas e desenhos. Não bastasse cada frase ou verso ser a fulguração de uma imagem, palavras, sílabas, versos ganham volume e ocupam o espaço para sinalizar o essencial, tornam-se o nomeado.
Os desenhos de Sonia Lins obedecem à mesma irreverência face ao estabelecido que orienta a descoberta e a desconstrução das palavras. Neles revela-se a maestria de uma iniciada na experiência radical dos trabalhos manuais: a falta de parcimônia no refazer e na minúcia, a total parcimônia quando se trata de definir o que importa. E se uma lei existe neste processo, ela é a de perceber a oscilação entre o direito e o avesso, o isto e o aquilo de que as coisas são feitas e pelo que as coisas são transformadas.
Sonia Lins não se considera artista, por considerar que ser artista é uma coisa totalmente diferente dela, que só gosta de brincar seja subvertendo as palavras, seja criando objetos, seja dedicando um ano inteiro de sua vida a fazer da palavra eu o ponto com qual bordou imagens que confirmam o outro como condição de sua existência.
Este percurso tão original e límpido tem sido percorrido sem qualquer ambição, a não ser a de obsessivamente fazer, a de transitar com rara desenvoltura entre a palavra, a expressão gráfica, o desenho e a confecção de objetos. Neste processo prevalece a ousadia de adotar o erro como único caminho para o acerto e de transformar a adversidade numa estimulante provocação ao exercício do humor.
Claudia Fares é curadora de arte, escritora e tradutora. Tem doutorado em Antropologia Cultural pela Universidade de Sorbonne, França. Coordenou a segunda edição de Baticum, feita pelo Museu Histórico Abílio Barreto.