Maria José de Queiroz*
Da memória às memórias, Sonia Lins vem construindo, mercê do resgate do passado, universo próprio, inconfundível. Num estilo insolente, sua obra nos introduz, de desafio em desafio, no uso e domínio da palavra. Alongando-se em monólogos, cuja bem dosada adstringência confere à busca pessoal um novo e original interesse, sua prosa revela, à luz de flashes sucessivos, uma retrospectiva de época. Registrados in loco, seus instantâneos figuram e interpelam a primeira geração nascida e criada em Belo Horizonte, a ainda adolescente capital de Minas.
Quem leu ou releu Baticum
e quem refez, com a tradicional família mineira, o itinerário das duas irmãs que "gostavam de enganar vizinhos sempre querendo saber quem era Lygia e quem se chamava Sonia", terá certamente aprendido que as Artes de Lygia Clark começaram nas reinações da infância e ganharam o mundo nos jogos verbais e nas astúcias da criação das duas irmãs que se perdiam e se reencontravam numa corrida sem fim, de aparecimentos e desaparecimentos.Na biografia de Lygia, cheia de enigmas, de alusões, de ironia, e também da presença física da artista, Sonia refere que "Ruth, mãe de Lygia, tinha dentro de si a semente da arte criativa que tomou conta do corpo da filha", isto é, do corpo da caçula. Mas em boa verdade, a leitura dessas mesmas páginas nos certifica de que a natureza cumpriu com justo empenho as leis da genética: a semente se dividiu em partes iguais entre as duas herdeiras.
Hoje, enquanto Lygia brinca de estátua entre seus objetos, Sonia, a insatisfeita, busca "o fora dentro / do mundo afora / o dentro adentro / do mundo denso / [...] / fora dentro / dentro e fora / [...] / de fora para dentro / de dentro para fora / [para] de novo poder entrar".
Eis o tudo de És tudo.
Na devassa perspicaz do cotidiano, nada escapa à observação da autora. Assim é que descobre, sine ira ac Studio, que "o avesso do avesso é o direito", "o depois do depois em antes se transforma antes e depois do depois" e que "o relógio que muito adianta acaba atrasando". Mas advirta-se: Sonia não se detém na pura especulação. Sua meta, "fora da meta", é a metáfora em todos os seus estados. Na multiplicidade de suas analogias implícitas, a figura de retórica assimila deformações e transformações semânticas e morfológicas. À descoberta fundadora dessa metamorfose, instaura-se uma nova ordem. E ao strip-tease a que submete as palavras, a autora nos convida à releitura de axiomas vinculados a velhos registros e códigos em desuso. Depois de revirar os vocábulos pelo avesso, Sonia labora e reelabora logogrifos: à maneira de Alfonso Reyes, o poeta das jitanjáforas, improvisa calembours, reinventa o vesre portenho, compõe e juxtapõe, burlescamente, palíndromos e contrepètries epigramáticas. Ato gratuito, suas invenções logram associar à razão o que possa parecer, a vôo de pássaro, uma artimanha caprichosa da curiosidade. Mas, não, não se trata disso: o jogo que desfaz o nexo entre o significante e o significado, reconstitui, à expensa do léxico, um instigante repertório de insuspeitas convergências.
Entre finezas e malabarismos do discurso, as páginas de És tudo evidenciam, à saciedade, que a palavra não dorme sono eterno nos verbetes dos dicionários. Quem diria? O nonsense tem razões que a própria razão desconhece...
Maria José de Queiroz é professora catedrática da Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG), além de lecionar na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos e na Universidade de Paris - Sorbonne. Doutora em Letras pela UFMG, Maria José de Queiroz já publicou mais de 30 trabalhos, entre livros, ensaios e poesias. Desde 1968 ocupa a cadeira de número 40 da Academia Mineira de Letras.