Guy Brett*
Zumbigos – estamos na esfera de palavras que tem uma curiosa pertinência, cujos sons parecem ter conexão com coisas universais, que reverberam em algum lugar dentro do corpo – qualquer corpo. Omphalos – outro reverberador – é o nome da pedra que, na antiguidade, representava o umbigo e era considerada um símbolo do centro do mundo.
Omphalos representava o mito da estabilidade. Naquele tempo, para marcar o centro do mundo (tanto espiritual quanto físico), os homens teriam erigido um monumento, uma pedra, ou mais ambiciosamente, uma coluna. Nos dias de hoje é preciso estar atento ao fato de que todo e qualquer ser humano carrega consigo este centro macio, falível, universal e, ainda assim, curiosamente individual.
O umbigo não parece provocar rupturas simbólicas, seja ele um pequeno espaço circular ou uma discreta protuberância. Resíduo de um momento de separação, torna-se para Sonia Lins um símbolo de conexão.
Zumbigos combina uma incursão pelas ruas e praias movimentadas do Rio de Janeiro – onde é possível fotografar qualquer umbigo e o umbigo de todos – com uma viagem por um único corpo, metafórico e generalizado. Viagem por uma terra onde, ocasionalmente, o umbigo pode trocar de lugar com o sol. Por curiosa coincidência, na época em que Sonia estava planejando Zumbigos, sem conhecer seu projeto, comecei a fotografar umbigos da estatuária antiga do Museu Britânico: egípcia, grega sumeriana, assíria, indiana. Fiz "close-ups" desses núcleos macios esculpidos nos mais duros materiais – mármore, basalto, granito – e que apresentam as mais variadas características formais, da mais suave indeterminação ao traçado mais rígido.
Não sabia com certeza que motivos me levaram a fazer essas fotos. Sabia apenas que a região do umbigo parecia ser um tipo de marca emblemática comum, íntima e vulnerável, que unificava todas as culturas do mundo, e mesmo assim, escapava do ônus da acepção, da significação. O umbigo apenas continuava a ser: tinha estado lá desde sempre.
Nos últimos anos, movida por um extraordinário impulso criador, Sonia tem utilizado todos os tipos de mídia, de minúsculos livros impressos a instalações em museus, de desenhos minuciosamente detalhados a seios de borracha, numa tentativa de se libertar das diferenças sociais e prestar um tributo ao coletivo. Dois anos antes de Zumbigos, ela fez uma exposição multimídia no Rio de Janeiro que explorava a relação entre o "eu" e o "outro". A palavra "eu", minuciosamente desenhada à mão, foi transformada em unidade básica, a molécula que compõe todos os seres, humanos, animais, machos, fêmeas, velhos, jovens, cósmicos, banais, belos e ridículos. "Eu poderia ser você e você poderia ser eu", escreveu ela, continuando numa espécie de rapsódia:
"eu – partícula de mim – tecido de pensamento atado a partículas de outros eus – tecido feito de neurônio de todos nós – nó de nós onde cada um é apenas um – onde eu de outros se convergem formando rede – colmeia de eus cosmológico – cosmilógico – eu transmitindo sinais a eus em galáxia móvel – eu palpável e abstrato – indivisível e multiplicável – eu – carestia – crescido como planta bravia – sem que ninguém percebesse – eu – gota de mim dentro de eus de outros".
O título desta exposição foi cuidadosamente escolhido: "Se é para brincar, eu também gosto". A artista não busca confrontar-nos com seu ego. Propõe que nos unamos em torno de algo já em andamento, e sugere que as melhores descobertas são feitas numa atmosfera de humor e brincadeira. A frase-título aparece também nas memórias que Sonia escreveu sobre sua irmã Lygia Clark, um testemunho extraordinário de suas infâncias. Na verdade, a frase aparece na primeira linha do livro e reaparece no final, quando Lygia morre. Sonia diz para a irmã: "Se é para brincar eu também gosto". Lygia, pode começar tudo outra vez. Mexa-se. Não fique aí deitada. Isso é só uma brincadeira de estátua. Você está viva".
Tais palavras parecem selar um pacto de amizade e rivalidade estabelecido entre as duas durante a infância. "Artes" – o nome do livro – traz muitos dos jogos que faziam, normalmente iniciados por Lygia, e frequentemente vigiados pelos vários tios que, apesar de todas as excentricidades individuais, formavam uma espécie de coro patriarcal:
"Ao chegarmos em casa meia-noite já passada, tios que haviam voltado da boemia, ao lado da avó cuja insônia deixava acordada exigiram explicações. Ficamos em observação e tios mais velhos o cenho fechavam quando nos viam aprender passos de tangos com tios mais novos. Numa manhã sem sol e sem praia, Lygia, aproveitando estar Carlos de peito nu, resolveu transformá-lo em mulher e ao tentar amarrar-lhes os peitos com barbante para dar-lhes volume, foi surpreendida pelas grossas sobrancelhas dos tios mais velhos, levantadas do jogo de gamão".
"Se é para brincar" – é provável que Sonia esteja dizendo isto também para as mídias que utiliza. Ela as combina livremente e sem inibições, a começar pelas palavras, revelando o prazer brasileiro de usar neologismos e conjuntos de palavras híbridas, criando sons e formas que sugerem o roçar e o esfregar dos corpos. Para ela não existe mídia superior, é impossível afirmar com que mídia sua exposição começa ou termina. No vídeo "Meu nome é eu", que faz parte de "Se é para brincar", tudo está aparentemente sujeito aos caprichos de uma mulher velha que, sentada em uma sala de estar, muda os canais da televisão interrompendo até mesmo as explicações da artista. A mulher está tricotando, seu tricô funde-se com desenhos "tricotados" feitos por Sonia nos quais a palavra "eu" é o fio que une todos os corpos e imagens, sempre na iminência de se desfazer. Em uma tela de TV dentro da tela, um homem tecido em tricô torna-se o protagonista que mergulha através de um caleidoscópio de "eu-desenhos" criados por Sonia, até emergir na vibração de um estádio de futebol em alvoroço, como reflexo da circularidade da rotação do videotape.
Os artistas brasileiros têm se destacado como pioneiros na criação de uma nova imagem do coletivo, utilizando diferentes meios poéticos, como os "corpos coletivos" de Lygia Clark, o "Eden" de Hélio Oiticica, o "Divisor" de Lygia Pape e os trabalhos da geração mais recente, como por exemplo, "Os Cem", as cédulas de dinheiro de JC Leirner. Sonia Lins faz parte deste grupo. Através de seu humor irreverente manifesta-se o desejo sério de construir uma nova coletividade para o planeta Terra – não em termos utópicos, mas através do reconhecimento não idealizado do que todos compartilhamos.
Ela o faz tecendo imagem e palavra, desenhos com palavras e palavras desenhadas que nunca passam ao largo do corpo, do ser físico, seja ele corpo humano ou fenômeno da natureza e do cosmos.
Guy Brett é crítico de arte e curador britânico e um dos maiores responsáveis na divulgação dos artistas latino-americanos e da arte cinética da década de 60 na Europa e América Latina. Entre seus escritos destacam-se obras como Kinetic Art: the Language of Movement (1968); Brasil Experimental: Arte/Vida Proposições e Paradoxos (2005) e Oiticica in London (2007). Brett também é autor de ensaios sobre Araeen, Derek Boshier e Lygia Clark, entre outros.