Claudia Fares*
Em 1978, através de um convênio entre a editora Pedra Q Ronca e a FUNARTE, foi publicado, em tiragem reduzida, Baticum, de Sonia Lins. O livro – síntese da mais requintada experimentação literária com um sofisticado jogo de linguagem gráfica – constitui uma obra seminal para a compreensão do imaginário da cidade de Belo Horizonte. No entanto, pouco divulgado e precariamente distribuído, ficou praticamente desconhecido pelos mineiros.
Sonia Lins nasceu em abril de 1919 em Belo Horizonte com o destino de ser artesã da palavra e da memória.
Seu trabalho é um raro exemplo da confluência do talento e da vocação. Talento para flagrar a palavra e vocação para persegui-la, colocar em evidência o que ela define, desvendar o que ela encobre e não esgota, quebrá-la e com seus cacos compor outras.
De temperamento inquieto, Sonia Lins desde cedo encontrou no tricô uma maneira de se apaziguar. Esta prática na confecção de teias pode ter sido o solo propiciador para que se cumprisse seu destino de contar e recontar, de fazer, desfazer e refazer, de lembrar, esquecer e relembrar. Sonia adestrou-se neste moto contínuo, adotou-o como território e, com isto, nos presenteia com textos que são gestos. Gestos de concisão, de insuportável lucidez e beleza.
Muito a propósito chamou seu primeiro livro de Baticum (1978), ritmo sintético e essencial da perpetuação da vida. Livro de memórias de sua infância em Belo Horizonte, memórias da cidade recém-fundada que guardam ainda o frescor dos jasmins do jardim da casa vizinha à casa paterna. Sonia parece escrever com "uma câmera engastada nos olhos" deixando aparecer o que é, livrando-se dos adjetivos e advérbios, dando lugar aos nomes e às ações. Como a límpida batida do coração, ba-ti-cum-ba-ti-cum, o jogo gráfico de letras e palavras ganha forma para contar a história da cidade, de seus habitantes ilustres e não ilustres, de suas ruas, vivida num tempo em que "não existia pedestre e todos caminhavam", tempo em que era possível "chover tâmara toda a tarde". Um tempo que tudo urde, tempo do coletivo que permeia o individual, tornando-o instrumento de relato de uma história interminável desdobrada em pequenos episódios, retalhos de lembranças, cintilações do cotidiano.
Nesta dinâmica tenaz de descoberta de sentidos surgem novas sílabas, destacam-se letras, instaurando-se um movimento gráfico que cria formas e desenhos. Não bastasse cada frase ou verso ser a fulguração de uma imagem, palavras, sílabas, versos ganham volume e ocupam o espaço para sinalizar o essencial, tornam-se o nomeado.
No começo foi a palavra. Como um soluço. Sua irmã mais velha acabara de aprender a ler e escrever. Como prova da façanha, escreveu uma carta para o avô e, com isto, ganhou um presente. Sonia também queria um e pediu à irmã que lhe ensinasse o meio de conquista-lo. Sentadas no chão, as duas irmãs percorreram as combinações do alfabeto. Quando se levantou, Sonia já sabia escrever. Mas era uma escrita contínua, em que as palavras ficavam coladas umas nas outras "como num tabuleiro de biscoito". Mais tarde ela diria em sua obra És tudo "quebrei a palavra, deixei a letrinteira".
Foi quebrando as palavras, recompondo-as, inscrevendo-as de maneira a fazer brilhar suas facetas ocultas e negligenciadas que Sonia Lins inaugurou uma Belo Horizonte muito particular e, ao mesmo tempo, completamente atravessada pelo coletivo. É esta Belo Horizonte – vista com graça, frescor, ironia e perspicácia – que se oferece agora ao público com esta segunda edição de Baticum.
Cláudia Fares coordenou a segunda edição de Baticum, feita pelo Museu Histórico Abílio Barreto. É curadora de arte, escritora e tradutora. Tem doutorado em Antropologia Cultural pela Universidade de Sorbonne, França.