Luciano Figueiredo*
"Heard melodies are sweet, but those unheard are sweeter; therefore, ye soft pipes, play on; not to the sensual ear, but, more endeared, pipe to the spirit ditties of no tone."
John Keats
Da caixa de memória. Do arquivo de vivências, da pasta difícil de classificar.
Conheci Sonia Lins em 1978, quando fui apresentado a ela pelo poeta Wally Salomão, que, na ocasião, publicava através de sua editora Pedra Q Ronca o primeiro livro de Sonia, cujo título era Baticum.
Foi um impacto raro conhecê-la e ler o seu livro, pois praticamente nada conhecia de sua atividade literária ou artística, exceto por alguns poemas publicados em português mesmo pela revista da Signals Gallery de Londres na década de 60 e que, em sua curta duração, muito divulgou a arte brasileira e latino-americana da época. Soube, bem depois, que Sonia havia publicado seus primeiros poemas no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil nos anos 50. Seu debut, portanto, deu-se já no circuito vanguardista e experimental.
Baticum foi uma surpresa instigante, porque aquela narrativa muito fragmentada tinha em sua espacialização e construção tipográficas um quê da visualidade dos poetas futuristas e de poesia concreta, porém sem que se pudesse atribuir a forma ou postulados de um ou de outro movimento. Baticum me fazia pensar numa coisa, ora noutra e, por vezes, pensei que Sonia Lins era uma espécie de Gertrudes Stein à la Minas Gerais por sua autonomia excêntrica e barroca com suas construções acrobáticas com as palavras: textos longos, textos curtos, sintaxe explodida e as palavras martelando umas nas outras em pura percussão verbal, carregando musicadas narrativas de vivências arcaicas de sua infância em Belo Horizonte, estranhamente fazendo-me lembrar Ezra Pound em um dos seus mais famosos versos nos cantos: "O que amas de verdade é tua herança verdadeira, o que amas de verdade não te será arrancado...".
O livro transpirava novidade e Hélio Oiticica – recém chegado de Nova Iorque – dizia aos berros: "Sonia é inteligentíssima!!!".
Baticum foi, sem dúvida, fundamental para tudo o que Sonia Lins veio a produzir depois, delimitando e potencializando sua forma poética, e também para uma visualidade que passou a explorar a partir dali, muito integrada à palavra e texto. Podemos falar, então, de uma visualidade de viés especial, e que sua gênese está na poesia: vem da palavra, das forças e mistérios verbais.
Suas concepções visuais, sejam em páginas de livros, objetos ou criações ambientais, não indicam resultado de olhar treinado em problemas espaciais próprios da pintura ou da escultura, deste ou daquele movimento de arte, de progressões formais ou conceituais, mesmo que Sonia tenha estudado pintura e possua requintada percepção espacial. Que caminhos da arte, que afluentes expressivos podemos atribuir ao processo criativo de uma artista como Sonia Lins, senão a condição experimental da arte como resultado das aventuras libertárias empreendidas pelas vanguardas do século XX?
Toda a sua produção de obras pós Baticum configura universo verbi/vocco/visual imaginário e todo seu. Tanto o é que, em seu trabalho seguinte, o Livro da Árvore (1984), Sonia concebe um livro-objeto para se ler praticamente sem sequência linear, feito de pranchas com colagens, desenhos e poemas especializados como caligramas líricos; muitas das imagens do livro são feitas de colagens com minúsculos recortes de revistas e jornais. São imagens da "fome da terra", disse-me certa vez, enquanto preparava a edição. Compactou assim, palavra e imagem neste seu trabalho de visão trágico/irônica sobre o solo desolado e arrasado por criminosos desmatamentos das florestas do Brasil.
Muitos são os casos na história da arte de indivíduos que realizaram suas expressividades de forma própria e alheia ao modo que outras costumam realizar. Artistas constroem carreiras e reputação atuando tenazmente dentro do circuito de arte, competindo em galerias, museus ou no mercado de arte. Entretanto, para alguns, a questão da profissionalização da expressividade não depende de ativismo dentro do circuito de arte. Muito embora estejam atentos e informados sobre o vai-e-vem de tendências e o chamado "lugar ao sol" na cena artística, na história da arte, por vezes lhes é indiferente.
Creio que um dos mais importantes legados das utopias, vanguardas e experimentações que marcaram a arte do século XX está no clamor pela expressão livre nos processos criativos e que resultaram numa espécie de popularização da arte; as rupturas, as oposições, as transgressões como possibilidades de liberdade e de uma mesma aspiração.
No Brasil dos anos 1950, quando surge o neoconcretismo, os seus postulados giravam em torno de transformações e experimentações que o crítico Mário Pedrosa soube bem sintetizar como "o exercício experimental da liberdade". Esse exercício viria de fato sinalizar condições para uma nova ideia da arte e fenomenalmente tencionaria as práticas artísticas para o binômio arte X vida.
Sonia Lins é herdeira desta condição popularizada da arte, da criatividade desestetizada como soube tão bem demonstrar nas malhas e teias poéticas do seu livro Eu (1999): obsessiva trama gráfica sobre a desaparição e revelação do Ser/Eu/Mundo.
E em seguida, És tudo (2000) com dezenas e dezenas – duzentos e trinta e dois ao todo – de cânticos curtíssimos, um por página, batucando arsenal de rimas e nonsense em todas as famílias tipográficas que pôde dispor numa espécie de luxuriante lazer gráfico.
Esta nova edição de Baticum, exatos vinte e cinco anos após seu lançamento, confirma sua vitalidade e riqueza, nada afetadas pela passagem do tempo, e inicia o leitor, principalmente o mineiro, no desconcertante universo de Sonia Lins.
Artista, designer e curador, Luciano Figueiredo nasceu no Ceará em 1948. Expoente do movimento contra cultura no Brasil, na década de 1970, dedica-se à pintura. Entre as suas mais recentes apresentações está a mostra multimídia Livro de Sombras 2, no centro cultural Oi Futuro, no Rio de Janeiro. Participou como artista de Bienais e de mostras coletivas como Transfutur, Kunstetage Kassel, Kassel, na Alemanha, em 1990. Como curador, trabalhou para instituições como Witte de With, Center for Contemporary Art, em Roterdã; Galerie Nationale du Jeu de Paume, em Paris e Fundació Antoni Tàpies, em Barcelona.