Mário da Silva Brito*
Sonia Lins é, por natureza, surrealista. Abomina o trivial, ama o insólito. Tem raro poder de transfiguração dos seres e das coisas. Posso dar fé cartorária dessas afirmativas, pois a conheço bem.
Essa a Sonia que reencontro nas páginas deste livro. Baticum é a palavra onomatopaica para a batida cardíaca, e esse zabumba que ritma o compasso do viver dá a cadência de suas páginas comovidas.
Pertence a uma família de inteligentes e sensíveis. Basta falar em Miguel Lins e em Lygia Clark – essa mulher de tantos inventos que abalaram o chão artístico nacional. Pois Sonia a eles se equipara – a eles e aos outros componentes inventivos da sua tribo. O banal em suas mãos – ou aos seus olhos – num prisco adquire nova roupagem e se torna originalidade, descoberta, inauguração.
Sonia é um festival de descobrimentos. Uma féerie de encantos de que só as fadas são capazes. Seus passes de mágica estão vistosamente exibidos a cada instante de Baticum. A cada pulsar de suas palavras. Porque, em Sonia Lins, as palavras não são coisa morta. São palpitações, latejam plenas de vida, estão em sístole e diástole incansáveis, vêm irrigadas de sangue – o sangue jovem, o fluxo, quente e humano, da dicção inesperada que dá às suas reminiscências tanto calor, tanta energia vital.
É verdade que, às vezes, ela ri, zomba, ridiculariza o tempo passado, notadamente os que nele habitaram e ainda habitam. Mas o faz por amor. O amor de menina trêfega, de espírito moleque. Baticum é uma terna travessura de sua mente rebelde. No entanto, reparem quanto de doçura emana do seu mundo de antanho, agora reconquistado, retomado na amplitude de suas dimensões, deformado por sua ótica nada saudosista.
Sonia tem a coragem de desmistificar a nostalgia, de reviver personagens na sua grandeza ou na sua humildade e de obrigá-los a caminhar no livro como andaram pelo mundo que criaram e creram inabalável. Mal sabiam eles que no próprio clã havia quem os demoliria ou os reduziria às suas verdadeiras e exatas proporções.
Mais do que um livro de reminiscências, mais do que um álbum de família, nunca um solene cartapácio memorialístico, Baticum é a renovação de um gênero. Sonia não cultiva o passado pelo passado. Já é o futuro folheando o antanho – e rindo-se gostosamente de suas estruturas arcaicas, dos seus fundamentos tradicionalistas. Mas o livro não é um petardo destruidor, uma bomba de ação retardada. Mostra apenas, e às claras, como esse piccolo mondo antico pesava sobre as novas gerações. Por isso, Baticum é um texto libertador. Libertador e arrebatador.
Nele também está presente um grande poeta – esse ser que trabalha o universo no sentido de lhe dar novo ordenamento. E poeta é Sonia nos interlúdios que se interpõem entre os vários capítulos do livro. Aí está Sonia plena e esplêndida de invenções, reconstruindo o seu cosmos em implosão.
Paulista, o jornalista, escritor e editor foi diretor da Civilização Brasileira, esteve entre os fundadores da Câmara Brasileira do Livro e presidiu a União Brasileira de Escritores (seção São Paulo). Crítico, ensaísta, historiador literário, é autor de História do modernismo brasileiro (1974). Em sua obra poética incluem-se, entre outros, Três Romances da Idade Urbana (1946); Biografia (1952); Universo (1961); PoeMário da Silva Brito (1966) e Suíte em Dor Maior (1978). Em 1976 recebeu o Prêmio Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da obra.