Claudia Fares*
Em abril do ano passado, quando estava prestes a inaugurar a exposição Zumbigos no Museu Nacional de Belas Artes, Sonia Lins já falava entusiasticamente sobre este Brasil Passado a Sujo. E, quando indagada sobre a precocidade de seu entusiasmo, respondia: "a única coisa que me interessa é o processo. O da Zumbigos já está finalizado e, depois, esta nova ideia me veio como se fosse um soluço...".
Brasil Passado a Sujo sintetiza o refinamento de um caminho que tem como ponto de partida a palavra, passa pelo grafismo, pelo desenho, pela criação de objetos, mas volta sempre, e cada vez mais depuradamente, à palavra.
No começo foi a palavra. Como um soluço. Sua irmã mais velha acabara de aprender a ler e escrever. Como prova da façanha, escreveu uma carta para o avô e, com isto, ganhou um presente. Sonia também queria um e pediu à irmã que lhe ensinasse o meio de conquistá-lo. Sentadas no chão, as duas irmãs percorreram as combinações do alfabeto. Quando se levantou, Sonia já sabia escrever. Mas era uma escrita contínua, em que suas palavras ficavam coladas umas nas outras "como num tabuleiro de biscoito". Mais tarde ela diria em sua obra És tudo: "quebrei a palavra, deixei a letrinteira".
A tessitura sempre esteve em questão para Sonia Lins, "ser tocada por uma coisa que ocorre e progride", um trabalho de ourivesaria, que ela faz como se tricotasse, sangrando a evidência do banal. Ela não se importa em desfazer e se desfazer, o que importa é que o resultado seja sempre límpido, embriagado de lucidez.
Brasil Passado a Sujo expõe, lucidamente, o óbvio que nos anestesia. Tão óbvio que é derrisório. Então, Sonia Lins lança mão do que é derrisório e nos mostra o quanto a palavra pode ser demoníaca e se instaurar como solo de nossas vidas cotidianas. Brincando com a demoníaca sedução das palavras, quebrando-as e iluminando o espaço entre elas, lembrando-nos o que já sabemos, Sonia Lins nos incita à coragem de voltar os olhos para as nossas tramas e a refazê-las com ironia e audácia.
Claudia Fares é curadora de arte, escritora e tradutora. Tem doutorado em Antropologia Cultural pela Universidade de Sorbonne, França. Entre outros trabalhos, coordenou a segunda edição de Baticum e a exposição Brasil passado a sujo.