Fernando Pedreira*
Há uns anos havia, na IIIe-de-Saint Louis, em Paris, um pequeno apartamento bem na margem do rio, na face norte da ilha. Íamos lá quase todos os domingos. Era um curioso apartamento que se apoiava em dois prédios vizinhos, colados, embora de construção muito desigual. Num deles, talvez o mais nobre, ficava a sala, com duas grandes e altas janelas duplas, a cozinha, o pequeno hall de entrada e o diminuto banheiro, onde se podia até tomar uma boa chuveirada. Saindo da sala, à direita, e descendo três ou quatro curtos degraus, chegava-se aos quartos de dormir, dois, com as respectivas dependências. Mas nessa ala, já do segundo prédio, não havia janelas duplas e, à noite, a friagem do rio entrava forte.
Os franceses são muito estritos em matéria de horário de refeições, mas Sonia Lins e Paulo Albuquerque, moradores do apartamento, eram mineiramente tolerantes. Chegávamos lá para o almoço, aos domingos, por volta das duas da tarde. Mas não havia almoço, ou antes, almoço ia haver, porém bem mais tarde, numa popular brasserie no extremo da ilha. No entretempo, bebia-se e conversava-se. Paulinho Albuquerque, na época, já havia deixado bem para trás os anos de medicina e navegação oceânica. Em troca, voava pela manhã sobre as cercanias de Paris em planadores e pequenos aviões de aeroclube e especializava-se em vinhos, bons vinhos, sob a tutela de um amigo francês da Maison Nicholas.
Havia, com frequência, hóspedes no apartamento, além dos muitos convidados. Me lembro de Evandro Lins e Silva, que vem ainda agora de morrer no Rio; Miguel Lins, tio de Sônia, e Aluisio Salles, amigos muito queridos; Roberto Campos, com seu surpreendente acervo de anedotas picantes; Sérgio Andrade, filho de Sônia. Fazia frio naqueles meses em Paris, e ventava na margem do rio. A horas tantas, uma alegre comitiva de brasileiros, embrulhada em pesados casacos, cachecóis, luvas e chapéus, descia às ruas da ilha em busca da bendita brasserie, onde Sonia e Paulo tinham recepção calorosa e o carinho de todos.
Anos mais tarde, já sem Paulo Albuquerque, que não podia viajar e ficara retido no Brasil, Sonia transferiu-se para a Rua Guynemer, ao lado do Jardim de Luxemburgo. Primeiro, num andar mais baixo, depois num apartamento mais amplo, no alto do prédio modernoso de onde se podia ver, por entre as árvores de Luxemburgo, o Pantheon, ao longe; as feias cúpulas da Igreja de S. Sulpice, bem perto; a torre Eiffel, no café da manhã e, na verdade, Paris quase toda, numa grande e rasa panorâmica de cerca de 180 graus.
O prédio tem ainda uma coisa que me encanta (e persegue) e que não é rara em Paris: um pátio de escola, atrás, e a alegre gritaria das crianças nas horas de recreio. Tem também, para Sonia, num apartamento próximo do seu, a presença de um casal de amigos, Michelle e Sérgio Correia da Costa. Mas o que essa fase da Rua Guynemer em verdade nos trouxe foi outra Sonia, sutilmente diferente da que conhecíamos: Sonia depois dos seus homens, depois dos homens de sua vida. Há de certamente haver quem fale de Sonia com mais verdade e até mais profundeza do que este escriba, mas a Sonia da Rua Guynemer me pareceu, desde o início, mais firme, mais determinada, mais severa, uma mulher segura de si, decidida a afirmar femininamente, e cada vez mais, sua personalidade e suas paixões tão fundas.
Essas paixões afloraram, ou antes, não afloraram, porque já estavam lá, mas ocuparam os espaços todos, muitas vezes até teimosamente: os dois filhos, sem dúvida, o segundo dos quais ela veria morrer nesses anos, e talvez mais do que tudo, a memória da irmã, Lygia Clark, que na verdade é a memória dela mesma, de sua infância e adolescência, de sua casa e sua família, de sua funda origem mineira e de sua arte, enfim, que é, em essência, a mesma de Lygia, embora talvez ainda mais funda, com sua obsessão da palavra e da linguagem escrita: arte travessa, menina, iconoclasta, descrente, muitas vezes impiedosa e impaciente, capaz de imprimir seus livros não só numa fita de vídeo, mas num rolo de papel higiênico. "Quebrei a palavra, deixei a letrinteira"... Soninha, querida Soninha.
Fernando Pedreira é escritor e jornalista. Escreveu para os principais jornais nacionais, entre eles o Estado de S. Paulo. Foi embaixador brasileiro na Unesco em 1999, no governo Fernando Henrique Cardoso. Fernando é autor, entre outras obras de, Um cavalo de chinelos (1999), Março, 31 (1964) e Brasil, política, 1964-74 (1975).