Guy Brett
Este livro inspirado nas memórias, na infância, é fascinante: editado no exato momento em que sua personagem principal começa a conquistar uma importância mundial, a ser internacionalmente reconhecida como uma das grandes artistas do nosso tempo, nele encontram-se duas linhas do tempo, dois universos. O que o torna ainda mais fascinante, quando se considera que a obra de Lygia Clark dedicou-se a desfazer, a ver através e além do mito do artista que nós herdamos. "Tomei consciência", escreveu Lygia numa carta citada por sua irmã Sonia Lins em suas memórias, "de que, na medida em que quase todos os artistas, hoje, se vomitam a si mesmos num processo de grande extroversão, eu, solitária, engulo cada vez mais, num processo de introversão, para depois fazer a ovolução... de um ovo de cada vez". Lygia Clark transformou nossa ideia sobre a relação entre artista e espectador. Sua série de objetos e proposições foram todas um meio de fazer com que o espectador se transformasse em participante e redescobrisse em si mesmo sua própria "poesia". Sua arte tem implicações profundas na nossa compreensão da relação entre sujeito e objeto, entre unidade pessoal e mundo, entre real e fantasia. Ela mesma mostrou essas repercussões, usando o que descobrira para inventar uma forma de "terapia", e para curar – ou ao menos liberar ou aliviar – algumas das formas mais extremas de crise psicológica ou contradições da vida deste Outro, que fora anteriormente o "espectador" de arte. Justo quando começamos a entender o adulto Lygia Clark, este livro nos conta sobre a criança. A conexão não é fortuita. Sonia Lins traça paralelos entre as brincadeiras da infância de Lygia Clark e seu trabalho posterior. Pelo título do livro, Sonia já anuncia este prisma: Artes, como em "arte" – ou "artimanhas". Contudo, Sonia evita a armadilha de uma tese acadêmica ou de um falso distanciamento. Como ela mesma escreve, na primeira linha do livro: "Se é para brincar eu também gosto..." Em outras palavras, ela entra na estória não como espectador, mas como participante, recriando sua infância através de seus dons literários, de sua marcante imaginação linguística e sintáxica, e que toma forma e corpo com a maravilhosa elasticidade do trabalho de Júlio Villani. Neste livro sobre a infância das duas irmãs se encontra uma fotografia de Lygia datada do fim de sua vida, seguida por páginas que focalizam primeiro os olhos – estes "olhos famintos" como são descritos numa das inúmeras referências a eles feitas – e depois a boca. Que ideia inteligente, a de nos fazer ler sobre o começo da vida de Lygia – inserida na cacofonia de uma grande família brasileira (cujo retrato coletivo é traçado por Sonia de uma maneira inimitável) – vendo ao mesmo tempo seu rosto marcado pela vida, contendo toda a sua beleza, o seu espírito irrequieto, e o cansaço que deve ter sido causado especialmente pela absorção das experiências de seus pacientes borderline. A lembrança da infância é um processo ambíguo. Pela lógica da "brincadeira", a pessoa projeta o presente sobre o passado, e o reinventa. Este livro é cinético: seus microcosmos são compostos de ações, relações, sensações corporais, transformações, que são as sementes do futuro trabalho de Lygia. Eu sempre fui fascinado pela relação entre o cerebral e o corpóreo presente em sua obra. A lucidez, a simplicidade e a força extraordinárias de seus Bichos e Relevos do começo, criados numa linguagem geométrico-abstrata, não desapareceram na medida em que seu trabalho se tornava cada vez mais orgânico. Seus escritos são igualmente claros, dialéticos, nunca emaranhados ou confusos, mesmo quando ela relata situações subjetivas, viscerais ou fantasmagóricas. Lygia sempre escolheu seus materiais entre os mais simples, e os utilizou de maneira engenhosa e essencial, nunca excessiva, deixando sempre um espaço livre para a imaginação. No entanto, este livro – permeado de citações tiradas de cartas de Lygia e alusões a outros escritos seus que desconheço – me fez ver que minhas próprias preferências me fizeram enfatizar o lado imaterial da imaginação de Lygia, e minimizar sua corporalidade sensual. "No desenho abstrato, o Bicho se escondia", como diria Sonia. Nós podemos revisar inteiramente nossa noção de Inteligência vendo como a mente é iluminada no discurso que Lygia mantinha sobre o corpo. O trabalho de Lygia Clark me marcou tanto que, nos últimos 30 anos, poucos foram os dias passados sem que eu pensasse nele. Ele me abriu um mundo novo, e formou "em meio a tanta confusão, um ponto de referência, um exemplo", como escreveu um dia um jovem admirador a Pasolini. Eu observei todos os fenômenos da arte contemporânea internacional relacionando-os com a posição adotada por Lygia, a qual parecia cristalizar todos os nossos dilemas e possibilidades. Sempre me perguntei (já que eu não tinha como saber), qual era a parte do elemento "Brasil" nisso tudo. E eu imaginava que a maneira com que Lygia processara e sintetizara sua experiência do Brasil dera um forte impulso à sua busca, e a ajudara a se concentrar precisamente nesta questão da relação do ser físico ao intelecto, das experiências de vida ao pensamento, que ela costumava resumir numa palavra que adorava usar, sempre pronunciada com um ronronar sensual: vivências. Nesta recriação de suas infâncias contada por Sonia, a maneira que tinha Lygia de viver seu trabalho é continuamente demonstrada. Artes é igualmente um livro sobre o relacionamento de duas irmãs. Esta alusão também está contida na primeira frase: Sonia também brinca. Por outro lado, do seu ponto de vista, Lygia certa feita me contou que era Sonia a linda, a brilhante entre as duas, que ela poderia ter sido uma artista ainda melhor – e que até se envolvera com arte um dia, como para provar, mas que não continuara nesta direção. Lygia sempre se apresentou como sendo, das duas, a que não tinha facilidade para isso, que não tinha inteligência, e que apesar de tudo... E este relacionamento continua até a última frase quando, vendo Lygia morta, Sonia resolve escrever este livro. A primeira e a última frases são contínuas e se entrelaçam, e Sonia diz: "Lygia, pode começar tudo outra vez. Mexa-se. Não fique aí deitada. Isso é só uma brincadeira de estátua. Você está viva”.
Guy Brett é crítico de arte e curador britânico e um dos maiores responsáveis na divulgação dos artistas latino-americanos e da arte cinética da década de 60 na Europa e América Latina. Entre seus escritos destacam-se obras como Kinetic Art: the Language of Movement (1968); Brasil Experimental: Arte/Vida Proposições e Paradoxos (2005) e Oiticica in London (2007). Brett também é autor de ensaios sobre Araeen, Derek Boshier e Lygia Clark, entre outros.