Suely Rolnik
Sonia Lins nos introduz na intimidade de seu convívio com Lygia Clark, a irmã caçula. Que não se espere a revelação de fatos secretos, nem de sentimentos pessoais, que comporiam a memória de um eu. É convocada aqui uma outra espécie de memória, habitada pelas marcas de vibrações das coisas no corpo. Por exemplo a lembrança da mãe das meninas envolvida por seu encontro com a música: "Seria a beleza desprendida de sua pessoa que fazia a música bonita ou a boniteza da música que a tornava tão bela?"; ou a lembrança do encontro noturno das irmãs com a escada que as levava ao dormitório: "O medo subia pisando calcanhares", ou ainda a lembrança da noite encontrando a casa da infância: "Saltara do céu a noite e se debruçava felina sobre a casa onde escuridão pulara a janela"... Magia de uma região invisível da subjetividade, onde as coisas são vivas e suas reverberações no corpo da autora destacam-se, ganham autonomia e geram mundos inesperados. Esta singular atmosfera nos é transmitida com sagacidade e sutileza pelas palavras de Sonia, apresentadas nas soluções plásticas de Júlio Villani.
É nesta região que Sonia irá entrelaçar a vida e a obra de Lygia, entrelaçamento confirmado por comentários da própria artista, em trechos de cartas para a irmã ou outros textos, com os quais a autora pontua a delicada construção desta sua memória do corpo vibrátil. Acompanhamos Lygia sendo tomada de estranhamento a cada vez que uma nova composição de vibrações invade sua subjetividade; e vemos que sempre que isto acontece, tal estranhamento irá mobilizar em Lygia a busca de formas de expressão que acabarão por materializar-se na proposta de uma nova obra, mesmo que muito tempo depois. Como ela mesma escreve num texto evocado por Sonia, não se trata de "buscar uma forma a ser encontrada seja no passado, seja no futuro, mas a vivência experimental do particípio presente da evolução incessante das formas". Evolução das formas dos objetos, que ela vê como "matéria viva cristalizada"; mas igualmente evolução das formas da própria subjetividade, que nasce e renasce de sua fecundação pelo mundo.
É ainda nesta região, agora na subjetividade do espectador, que parece estar colocado o alvo da obra de Lygia. Isto se torna cada vez mais intencional a partir da virada radical que se opera em seu trabalho após os Bichos, em meados dos anos sessenta. À primeira vista, os objetos que ela cria nesta última fase de sua obra parecem dirigir-se a um eu, e dele depender para fazer sentido. Mas é todo o contrário: é da eclosão deste eu que estes objetos irão depender realmente. O espectador é levado a deixar de se perceber exclusivamente no terreno de uma representação de si, para investir a vibratibilidade de seu corpo como referência de sua autopercepção. Ele passa então a desenvolver uma escuta para as intensidades que o povoam no contato com estes objetos, em função das quais ele irá reconfigurar-se. É nesta mudança produzida na subjetividade do espectador que estes objetos ganham todo seu sentido. Talvez aí resida a força maior da obra de Lygia Clark, sua contribuição mais original para as questões que se colocam no contemporâneo. É que, nesta virada de século, a subjetividade impõe-se como tema central para se pensar ou promover qualquer transformação efetiva da realidade. Lygia Clark parece nos apontar um caminho, ao pretender, com sua obra, criar condições para que o espectador conquiste na subjetividade um certo estado no qual possa suportar a contingência das formas, capacidade mais do que necessária nos dias de hoje, em que as formas tanto objetivas como subjetivas perdem sentido com muita rapidez. Um estado em que se torne possível para o espectador desgrudar de qualquer forma que ele viva ilusoriamente como sua identidade, para conseguir navegar nas águas instáveis do corpo vibrátil e adquirir a liberdade de criar outras formas toda vez que a onda trazida por um novo feixe de sensações assim o exigir. Lygia chamou isto de "atingir o singular estado de arte sem arte".
Não é exatamente neste estado que nos lança Sonia Lins? A impressão que fica é que, neste livro, Lygia de fato se mexe, levanta e começa tudo de novo, como amorosamente lhe ordena a irmã. Lygia Clark está viva.
Suely Rolnik é psicoterapeuta, crítica cultural e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde em 1982 fundou o Núcleo de Estudos da Subjetividade. É também professora convidada do Programa de Estudos Independentes do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona e autora, com Félix Guattari, do livro Micropolítica — Cartografias do desejo (1986), entre outras obras.