Apresentação do livro "Se é para brincar eu também gosto"

Breve introdução

Marcel Souto Maior*

Conheci Sonia Lins em novembro de 2000. Dia de sol no Rio de Janeiro, praia lotada no meio da semana. Sonia recebeu-me impecável, vestida de preto, com seu cabelo Chanel e os olhos brilhantes de quem acaba de ter uma grande ideia.

Fui entrevistá-la para um livro sobre seu primo mais misterioso e intrigante, o ex-banqueiro José Luiz de Magalhães Lins, mecenas do Cinema Novo, incensado em crônicas de Nelson Rodrigues e em entrevistas de Glauber Rocha.

Sonia era uma das pessoas mais admiradas por José Luiz. E é difícil merecer a admiração dele.

Na época, eu tinha apenas duas informações básicas sobre ela: Sonia era irmã da artista plástica Lygia Clark e autora de um livro tão impressionante quando desconhecido, intitulado Baticum.

Antes do encontro só tive tempo de passar os olhos sobre alguns capítulos. Foi o suficiente para entender que eu iria conversar com uma escritora capaz de transformar lembranças da infância em textos memoráveis. Uma especialista na arte de desmontar palavras e construir parágrafos líricos e irreverentes ao mesmo tempo – uma combinação rara e arriscada.

“Tínhamos medo da mãe, brava durante o dia e sonâmbula à noite. Quando todos dormiam, vomitava palavras com olhos querendo saltar-lhe da cara. Durante o dia era linda com seus cabelos em preto coque. Havia hora em que nada dizia. Sentava-se ao piano e com dedos maus batia em teclas para depois acaricia-las, dedos já mansos sobre notas deslizando. Mãos se levantavam e produziam som calcando pretos bemóis e sustenidos, o rosto retesado como num parto, música espremendo da caixa preta.” [Baticum]

Em quase duas horas de conversa, descobri muito mais sobre Sonia Lins. Ela morava em Paris, para onde se mudara em 1991, e aquele belo apartamento onde estávamos de frente para o mar, em Ipanema, pertencia a seu filho, Sérgio. Sua estada no Rio de Janeiro devia-se a uma série de compromissos artísticos.

Com aquele brilho nos olhos, Sonia estava às voltas com uma explosão criativa. Uma de suas crias ela me entregou no nosso encontro, ainda recém-saída do forno. Um belíssimo livro, com primorosa impressão da Guilhaume imprimeur e um belo título: És tudo. O subtítulo informava: "Quebrei a palavra... deixei a letrinteira".

Enquanto escrevo, folheio o presente de Sonia e reencontro a autora fragmentada nas páginas preenchidas por frases curtas, certeiras e reveladoras. Cada texto é uma fresta por onde vislumbramos vultos e flagrantes de suas muitas personalidades.

A Sonia que brinca com as palavras:

“Para que o para-quedas
Pare de parar a queda
A queda para o para-quedas”
A Sonia que faz a palavra rolar:
“Engolindo o H do chiclete
Ciclete fica rodando na boca”
A Sonia que não deve nada a ninguém:
“Meu nome é nomenclatura
Ninguém me apura
Ninguém me atura
Ninguém me segura”

Nossa conversa foi pontuada por lembranças do pai Jair Lins – "o pai que baixo assobiava e que na mesa mastigava com maxilares de cavalo", como ela o define em Baticum – e do avô paterno Edmundo, o "avô baixo e gordo", segundo definição do livro.

Jair e Edmundo – era fácil perceber – foram os homens da vida de Sonia, as grandes influências da menina que continuava viva dentro dela.

Jair era o pai que repetia "sai da frente" para espantar os quatro filhos quando chegava em casa, depois do trabalho, e era também o homem capaz de criar galos de briga para rinhas e de cultivar orquídeas no sitio perto de Belo Horizonte com a mesma convicção.

“O pai que baixo assoviava e que na mesa mastigava com maxilares de cavalo tinha feito uma rinha onde treinava galos para irem depois brigar na cidade. [...] A briga teria que durar até que 1 morresse, pois o verdadeiro galo de briga não canta de galinha pedindo arrego.” [Baticum]

O avô Edmundo, então ilustre presidente do Supremo Tribunal Federal, costumava passar férias na casa do filho e era quem botava discos para tocar na vitrola, na maior altura, para dançar e pular com os netos.

Um de seus hábitos era mergulhar na banheira fumegante, abastecida com 250 gramas de bicarbonato de sódio e, com o rosário na mão, recitar em voz alta, para surpresa de todos, estrofes inteiras da Divina Comédia, poemas de Camões ou textos de Ovídios. Para cada conta, um verso, até o fim, até os dedos ficarem murchos.

“60 dias brincávamos com o avô, que às 5 da manhã fazia a barba e se deitava na banheira de água e bicarbonato, recitando, em rosário de barbante, versos dos Lusíadas até ficar limpo. Ao levantar-nos, já estava ele à mesa da copa sentado, segurando a colher com dedos murchos, tomando a aveia do mingau feito pela avó. [...] Íamos para o quarto dele, onde na cama se estirava, o braço esquerdo dobrado segurando-lhe a cabeça. Montávamos em suas costas transformando-o em leitoa, cujos peitos tivesse nascido no lombo, com leitões presos neles.” [Baticum]

Em nossa conversa, Sonia me contou detalhes da convivência, décadas atrás, com esse avô e esse pai. Minúcias que gravei e anotei num bloco hoje amarrotado.

– Oitenta anos – ela me disse em determinado trecho da conversa e eu não entendi direito o sentido daquele número.

– Oitenta anos? O que tem 80 anos?

– Eu tenho 80 anos.

Foi um choque ver aquela jovem em plena ebulição, no auge de seu poder criativo, anunciar uma idade daquelas.

– Oitenta anos tenho eu – tive vontade de dizer.

Sonia era uma criança, quase adolescente, quando falava sobre a exposição concebida por ela para o Museu Nacional de Belas Artes, Se é para brincar eu também gosto. Usava gestos contidos e palavras exuberantes para descrever obras como o guarda-chuva morcego e os seios dos quais jorraria leite. A mostra estava em fase final de montagem e ela já se preocupava com seu próximo objeto de estudo: o umbigo, tema da exposição seguinte, Zumbigos (2002).

Eram muitos os projetos e seriam muitas as realizações dos anos seguintes (tão escassos): livros, mostras, vídeos, textos, instalações.

Havia muito a fazer e havia também, dentro de Sonia, uma ameaça velada, um inimigo ainda oculto: o câncer. Um mal que ela iria enfrentar até o fim, com a coragem de sempre e aquele brilho quase ofuscante nos olhos.

Enquanto travava sua luta diária contra a doença – nunca lamentada e comentada com reserva apenas com a família e os amigos mais íntimos – Sonia escreveu frases afiadas para seu último livro: O livro das dessabedorias (2003).

É deste livro que pinço agora as últimas frases desta introdução, um pedido de licença e de desculpas também a Sonia pela ousadia de tentar retratá-la – logo ela, memorialista insuperável – numa biografia póstuma.

Chega a ser cara-de-pau, eu sei, mas o risco vale a pena.

Com a palavra, Sonia Lins:

“Todos nós
Gostaríamos de ter
Algumas páginas de nossas biografias
Arrancadas
A minha já foi depenada.”

Marcel Souto Maior

Marcel Souto Maior é jornalista e escritor. Entre outras obras, é autor de As vidas de Chico Xavier e de Kardec. Como roteirista da Rede Globo, criou programas como Profissão Repórter e Na moral.