Sonia Lins
Terminando a discussão, passou a língua entre os lábios como se acabasse de engolir o último bocado do almoço. Chamou 1 táxi e pediu ao motorista que a deixasse na necrópole dos vivos. Entre gramados, lá estava o pavilhão lilás, onde a aguardava uma moça de boné e avental. Conduziu-a à cela reservada.
Enquanto se despia, notou que lhe tremiam os dedos ao retirarem os botões das casas, e tentando acalmar-se, experimentou conversar:
- Então, muito trabalho?
Ao que respondeu a moça de avental e boné:
- Internamos ontem 400.000 desempregados. Como nada tem a fazer durante o inverno, o governo prefere hiberná-los aqui, do que deixar que se aglomerem em greves.
A moça, cujas mãos tremiam, continuava a se despir, e sem sucesso, procurava retirar do pescoço o seu colar de pérolas. Veio ajudá-la a de boné e avental, sempre pronta a responder-lhe as perguntas:
- Realmente, a hibernação é uma providência pesada à nação, e por isto será cobrado aos industriais, o imposto letárgico.
Ao acabar de despir-se, a moça em pé era uma árvore podada entre peças coloridas que deixara cair. A de avental e boné curvava-se para apanhá-las, enquanto seus lábios, hirtos com o esforço, marcavam em cada palavra pronunciada, uma cintura:
- Enquanto dormirem 1 razoável nº de indivíduos, haverá excesso de gêneros (e também de peso, pensou), o que manterá baixo o custo de vida.
Era como essas grandes caixas plásticas de coloridos diversos, que enchem de músicas os botequins, bastava que lhe apertassem 1 botão e não mais deixaria de falar.
Em pé, a moça desnuda acompanhava com o olhar o laço branco do avental da de boné, que ainda colhendo peças, flexionava o corpo. Seus dedos não mais tremiam.
- Abrindo este pavilhão o governo fechou hospitais e cadeias. Está provado que o crime é uma explosão neurótica e a maneira mais rápida de reestruturar personalidades é a hibernação.
Interrompendo-a, foi aberta a porta da cela para dar passagem a enfermeira que trazia 1 tubo de oxigênio que depressa foi introduzido no nariz da que estava nua e cujo nome era Begônia. Deitaram-na e antes que lhe injetassem a droga, pôs-se Begônia a pensar:
- Sei que Miguel é meu marido, mas sei que é a Sara a quem ele ama. Quanto a mim não sei se o amo. Sei que ambos fazem-me sofrer. Estragarei este romance com a minha ausência. Já não será necessário a Miguel compor mentiras que justifiquem suas atitudes. Não me encontrará em casa hoje a noite. Nem amanhã, nem depois. Sairei daqui depois que 300 dias tenham passado e nestes 10 meses prometeram-me remoçar-me 10 anos.
Erguida em seta, da mão da enfermeira, uma seringa fina e leitosa, apontava para ela. Begônia, em quem finalmente vestiram uma camisola, apressou-se em seus pensamentos, e considerou a hipótese de morrer. Deu de ombros e entregou-lhe o braço.
O algodão frio massageou-lhe a veia saltada pela pressão da borracha que lhe apertava o braço. Fechou os olhos sabendo que só tornaria a abri-los depois de 7.200 horas e imaginou então, tê-los inchados. Cresceria o cabelo capinado das pernas e debaixo dos braços, criaria 2 lulús negros, e esta ideia encheu-lhe de cócegas o que fez com que se levantassem o canto de seus lábios até então descidos.
-Esta injeção provoca em todos os pacientes, uma euforia. Veja como esta sorri, escutou ainda a voz da enfermeira. Nos pés de Begônia, uma dormência subia-lhe a cabeça. Encolheu-se e devagar os joelhos acercaram-se de seu maxilar que batiam.
Na ficha foi anotado o momento exato em que começou a ressonar.
A moça encolhida e de camisola, a quem chamavam Begônia e em cujo nariz havia 1 tubo que lhe provia oxigênio, sentia-se no útero materno e mantinha seu corpo em embrião aderido ao acochado de suas paredes mornas. Com o passar do tempo, viu-se rodeada d’agua e como uma tartaruga que quisesse emigrar, pôs-se a nadar e a cabecear. Assistiu ao próprio nascimento e foi como se lhe houvessem experimentado 1 chapéu demasiado apertado para a sua cabeça. A luz furava-lhe os olhos, mas era fascinante o seu esplendor e a primeira golfada de ar respirado quase a afogou, fazendo-a gritar, o que muito a assustou. Quando emitia vagidos para que pudesse afinar suas cordas vocais, os adultos entupiam-lhe de açúcar a boca. Partira daí a sua preferência por salgados. Dentro de sua cabeça, as palavras chocavam-se em boliche. Organizou-as quanto às sensações, foi quando a mandaram para a escola, a fim de organizá-las em ordem alfabética. Começou a colecionar temores! Esquivava-se. Professores, os colegas inibiam-na, corria da servente e curvava-se diante da diretora e ainda se admiravam dela estar ficando corcunda. Ao voltar para casa, olhava e fugia desesperada dos soldados que encontrava pelas ruas e também a mãe passou-lhe a ser hostil, exigindo sua permanência na escola. As células de seu corpo, tornaram-se cúmplices para fazê-la mulher. Extroverteram-se-lhe os seios e ela não sabia o que fazer com eles. Descobriu que o pai fazia parte da vasta legião do sexo oposto. Os homens eram cavalos ancudos que os pés queriam pisar-lhe e ao casar escolheu 1 que se assemelhasse ao pai. Os filhos que tivera escaparam-se de seu corpo como 2 ovos impossíveis de serem retidos. Agora, cuidava o marido em substituí-la e agitada, ela se debatia dentro de seus problemas, analisando-se, perscrutando todos os seus túneis a procura do fantasma da loucura que sentia, vez por outra, acariciar-lhe a carne. Pedaços de si estremeciam como pescoços de cavalos que enxotassem moscas. Chegou a distingui-lo delineando na palma de sua mão.
Durante os 432.0000 minutos em que permaneceu adormecida, pequenos choques mecânicos curaram-na e todos os temores abandonaram-na como 1 formigueiro que se transferisse de lugar. Reajustadas foram as suas peças interiores e corrigida foi sua visão mental. O marido passou a representar para ela exatamente a quarta parte que representava antes e os filhos mostraram-se articulados. A vida tornara-se azul, projetava aos seus pés, lambendo-os e provocando pouca espuma.
Na parede da cela, 1 cronômetro passou a emitir ligeiros ruídos. Era chegada a sua hora de despertar e a enfermeira, agora sem a leitosa seringa nas mãos, passou a mexer-lhe nos cabelos.
Cerrou mais os joelhos contra o queixo. Elétricas agulhas cosquearam-lhe as solas dos pés. Acordou e pediu 1 espelho. O tubo de oxigênio já fora retirado do seu nariz, deixando-lhe as ventas levemente dilatadas e róseas. Passou a mão pelas pernas, estavam lisas, e sem varizes. Mesmas roupas voltaram a lhe cobrir o corpo com a diferença de encherem-lhe agora a pele de ligeiras pipocas e urticárias, é que esta se tornara fina como a dos recém-nascidos.
Aguardava-a, no pátio, o marido. Desceu os degraus da portaria achando que o céu azul, subira de gabarito. No automóvel que outrora fora verde, estava Miguel com uma das crianças. Encaminhou-se até eles, brejeira e leve, como uma criança que iniciasse os primeiros passos. Ao atravessarem os 10 minutos de gramado que isolavam a necrópole dos vivos dos mortos da cidade, notou a calva que espichara a testa do marido. Sobre o plástico da almofada, sua grande mão pescava a dela, que se esquivava. Olhou para o garoto, que do banco de trás lhe sorria. Seria o mais velho ou o caçula? Achou mais prudente perguntar pelo que ficara em casa:
Morreu de pneumonia, responderam pai e filho em uníssono.
Os pneus do carro rodavam silenciosamente sobre o asfalto vazio das ruas. Tinha a impressão de que haviam abandonado a cidade, ou estavam ainda passando pelo cemitério?
E o trânsito, o que é feito dele, indagou.
Quase a metade da população foi posta a dormir, explicou o pai. As eleições serão daqui a dias e só votarão indivíduos que tiverem diploma do curso ginasial. Os outros, conforme lei passada na câmara, enquanto estiveste a dormir, deverão hibernar-se. Begônia mantinha o olhar vago. Postes e paredes passavam cheios de cartazes coloridos. Sentia-se como 1 alvo cujo centro, nada mais podia atingir.
Chegaram em casa e na cozinha, 2 empregadas desconhecidas conversavam em voz alta. Na sala, ergueu o filho vivo no colo, aquilatando-lhe o peso. Chamando-a a realidade, dentro da boca da criança, 2 dentes substituíam os de leite que haviam caído, menores e mais brancos. Levou-a o marido até o quarto. Comprara-lhe uma mobília para que a ajudasse a convencer de que ele também mudara. Só a ela pertenceria.
Sobre a cômoda, ao lado das flores frescas, reconheceu o despertador parado, com o vidro partido. Quando, desde quando? Como a agulha de uma bússola o pensamento voltou-se para o caçula desaparecido. Contudo, não lhe assentava a tristeza, antes permanecia sobre sua cabeça como uma nuvem. Tinha vontade de agarrá-la como a uma boina.
Sentou-se na cama, fazendo com que seu corpo sofresse 1 baque, havia-a calculado mais baixo. Miguel acercou-se, querendo abraçá-la. Estava pressuroso para demonstrar-lhe sua recente fidelidade. Mas que importância tinha esse fato para Begônia? Queria apenas mostrar-se alegre, mas a alegria escapara-lhe pelos poros e agora brilhava apenas nos seus cabelos.
Impacientemente paciente, obstinava o marido em seus propósitos até que 1 alto falante passou, gritando os últimos estertores da propaganda eleitoral.
Ela não podia prescindir vez por outra de 1 bocejo.
Pacientemente impaciente, tentava Miguel convencê-la.
As pessoas que quiserem abstrair-se do direito do voto, dizia o alto falante, poderão dirigir-se à câmara de hibernação onde lhes será oferecido 1 sono reparador de 72 horas consecutivas.
Os bocejos retidos enchiam de lágrimas os olhos de Begônia.
Impacientemente impaciente, desistiu Miguel de seus intentos e antes de deixá-la só no quarto, enfurecido e descompondo-a, bateu com os pés no chão como uma criança estúpida. Surpresa, Begônia, entre lágrimas, enxergava-o como 1 miniaturo raivoso e acercou-se dele, pronta a dominá-lo pela crina. A porta do quarto, foi-lhe batida na cara. Dentro dele as más palavras pronunciadas começaram a crescer como bolhas de sabão.
Begônia pôs-se a andar, tentando embalar seus próprios pensamentos. Parecia-lhe mais alto o piso de madeira e em consequência, a sola de seu sapato, por vezes, riscava a superfície das tábuas que a cera tornara lisa. As palavras feias subiram aquietando-se no lustre de cristal e faziam chover uma ironiazinha fina sobres os ombros ocultos pela blusa escura. Ergueu-os num acinte:
- É inútil Miguel pensar que de novo me envolverá no lençol de seus dramas. O máximo que poderei fazer por ele é arrancar-lhe a língua suja e manda-la lavar numa tinturaria.
Parou. Seus dedos firmes começaram a por os botões para fora das casas a fim de que as roupas a deixassem tranquila.
Deitou, e ao acordar, junto com o café que lhe era servido, soube que Miguel fora hibernar-se.
A alegria que persistia ainda em apenas brilhar-lhe nos cabelos calcou-lhe desta vez na carne, transparecendo-lhe nos olhos.
- Quando, até quando?
O despertador parado marcava 5 horas. Afastou seu ponteiro grande e deu-lhe corda.