Sexta-feira santa

Sonia Lins

O ventre distendido de Tulipa era sacudido por movimentos estranhos. Mostrando os dentes ela rosnava de dor e orgulho. Brevemente encheria 1 caixote de animais pequenos, gorduchos e pintados, na certeza de que desta vez puxariam a ela. Coçou a mancha negra que lhe cobria 1 dos olhos como uma boina. Com exceção da criatura grotesca que defronte abocanhava moscas, todos os seus filhotes haviam sido uns amores. Esta era exatamente o pai, 1 canzarrão que lhe impingiram certa tarde, quando ela, Tulipa, não passava de uma adolescente. Era horrível e não mais podia esquecê-lo por causa de Colombina que com suas maneiras xucras denunciavam sua origem plebeia. A verdade é que desde que lhe nascera a filha a vida se transformara em constante disputa de ossos e carinhos.

Novos arrancos lhe esticaram ainda mais o ventre. Tulipa mudou de posição e deu com Colombina encarando-a com 1 olho amarelo e cruel.

Tulipa não sabia, mas havia tempos que Colombina dera para se sentir estranha, o osso que com tanta voracidade comia na véspera, incomodava-a sempre pela manhã. Tornara-se impaciente com as pulgas que como submarinos lhes mergulhavam no pelo e também o seu próprio ventre dera para crescer em rebolados com se tivesse vida própria.

Havia 1 momento desusado na rua. O sol estava quente e as vasilhas vazias. Colombina ergueu-se sobre as 4 patas e dirigiu-se para o portão. Na rua corria 1 rio de pessoas que cantavam e arrastavam os pés. Colombina com as orelhas levantadas, tomou parte no coro com seus ganidos e queixumes. Nada lhe haviam dado para comer. Seu rabo curto implorava às pessoas que desfilavam que dela tivessem piedade. Tulipa recolhera-se ao caixote e ora punha-se a gemer ou a dormir. Impaciente Colombina voltou para o pátio e pôs-se a farejar a porta da cozinha. Haviam comido bacalhau e era inútil arranhar como estava fazendo, a madeira da porta. Haviam saído os 3. Deitou-se debaixo da árvore e quando piscou mais demoradamente o sono fechou-lhe os olhos.

No céu azul o sol era uma tangerina gorda que suava sangue e debaixo dele as pessoas continuavam com véus na cabeça, arrastando sapatos. As galinhas começavam a se acomodar sobre os degraus dos poleiros. Até então, Tulipa estivera a gemer. Aliviada olhou para a ninhada. Eram novelos de lã animados, vivos e gulosos. Lambeu-os e notando-os sossegados sorrateiramente afastou-se.

Despertando Colombina sentiu no ar o cheiro de sangue fresco e incontinente a baba passou a escorrer-lhe da boca. Aproximou-se do caixote onde Tulipa estivera deitada e devorou-os enquanto a cauda abanava numa inconsciente satisfação.

Depois que voltaram da procissão dois seres tiraram os sapatos e puseram-se a conversar:

Coitada da Tulipa, está tão angustiada que a boina preta que a tornava tão gaiata lhe pesa agora, sobre 1 dos olhos como uma bandeira de luto.

Claro... Dizia ele e já havia aberto os jornais.

Cadelinha de maus instintos a Colombina. Primeiro, cruza-se com 1 vira-lata qualquer e agora comete 1 pecado destes.

Precisamos separá-las depois do que aconteceu, comentou ele, já entranhado nas notícias políticas.

A lua passara ao minguante, tornara-se nova, crescera e de novo voltara a brilhar no céu. Colombina levantava-se, mudava de lugar, chorava, gania, achava atroz e não passava.

Sentada estava Tulipa olhando a lua. O galo ia cantar e a dor de Colombina lhe fazia 1 certo bem. E nesta posição esperou que Colombina terminasse, afastando-se do caixote como ela mesma o havia feito, e atenta viu-a exausta, a língua a escapar-lhe da boca, sair à procura do que beber. Quando voltou 3 dos seus cachorrinhos haviam desaparecido. Não havia sinais de sangue no pescoço branco de Tulipa, mas sua meia dúzia de tetas não lhe pesava tanto quanto meia hora atrás.

Enquanto ele continuava a leitura dos jornais ela punha-o ao corrente das novidades:

Brigaram como umas possessas, mas Tulipa está feliz com os enteados. Lambe-os como se fossem de açúcar.

Unh... Murmurou ele a maneira de comentário. As letras dos jornais sugavam-no como pulgas.

E preste atenção querido, há uma coisa que me diz que também esses são filhos do Fox do 42 que cruzamos com a Tulipa.

Como? Indagou ele estimulado. Sua voz traia-lhe uma certa cumplicidade que não deixou de desagradá-la 1 pouco.

Cachorradas, terminou ele rindo e ela sentiu-se quinze anos mais velha.