Sonia Lins
Era inverno. Vestira-se de verde e saíra. Apoiava-se 1 pouco no braço da cunhada e ao atravessar a rua trocava passos miúdos e desencontrados. 1 camelô oferecia pares de meias, parou e com cuidado escolheu número e cor. Sorria pelos poros e as palavras escapavam-lhe da boca como se fossem perdigotos voláteis e coloridos. O ar frio, num convite, imiscuía-se pelas narinas adentro sem esperar que o pulmão o sugasse e ao ser expirado, insistia em fazê-la extroverter-se, estabelecendo assim, perfeita osmose entre o meio e ela. Iam à costureira e a de verde escolheria roupas para a próxima estação, pois a primavera não tardaria muito. E a perspectiva próxima de palpar tecidos leves cobertos de flores, excitava-a, e tinha a impressão de estar bebendo a vida. Ao atravessarem uma praça, 1 casal de cegos manipulou 1 realejo e notas claras invadiram o ar em tropel, arfando os cabelos da que estava de verde e que era loura. Afastaram-se e ria a de verde achando que ambas deviam parecer pequenas éguas que batiam com os cascos no chão enquanto experimentavam relinchos. Teriam que andar até a costureira, era próximo e os sapatos de salto ainda não haviam começado a importuná-las, antes pareciam caminhar sobre nuvens.
Inesperadamente a cunhada pegou-lhe no braço:
- Olhe aquele ajuntamento.
- Onde? - perguntava a outra, que de verde, procurava exatamente do lado oposto.
Defronte, uma multidão estagnara de ambos os lados do passeio, ensanduichando o trânsito que embora comprimido, continuava a escoar.
Estavam quase chegando à casa da costureira e a de verde que era menos tímida indagou de 1 rapaz qual a razão daquele amontoado de gente.
- Foi 1 garoto que ao voltar da escola foi atropelado - respondeu, com a voz abafada por um cachenês.
Estremeceram ambas e mecanicamente dirigiram os pescoços para o local do desastre. O corpo já houvera sido removido, mas o sol de inverno tentava aquecer poças de sangue que, quietas, preenchiam depressões do asfalto. Como 1 grande criminoso o ônibus que o matara quedara imóvel, preso como 1 cão.
Tinha 2 filhos a de verde e estavam no colégio. Dele às vezes conseguiam fugir na esperança de mais cedo retornarem aos folguedos de casa. Também a cunhada tinha 1 e estava no mesmo colégio que os primos. Embora relutasse 1 pouco, este também fugia as vezes, vencido pela insistência dos outros. Quando os planos eram bem sucedidos fugiam juntos, mas acontecia, embora com menos frequência, escapulirem parceladamente.
A de verde sentiu a alegria poluída dentro de si, escorrer-se, exatamente como acontece com a água que depois de usada procura fuga através do encanamento da banheira. Não ousava formular hipóteses, ao mesmo tempo ignorava até qual camada seria verdadeira a placidez que o nariz levemente comprido da cunhada emprestava ao seu rosto também alongado. Teria ela tido algum pensamento obscuro ou talvez se julgasse extraída da órbita da morte? Seria fácil contaminá-la pelo medo e a de verde sentia-se como 1 cacique que houvesse perdido 1 dos elementos de sua tribo. Também seria fácil tudo varrer de sua própria cabeça, perguntando a 1 dos espectadores detalhes sobre a criança morta. No entanto, não fez nenhuma coisa nem outra. Haveria de qualquer maneira 1 ser abatido, alguém deveria chorar mais tarde e si ela soubesse de fatos que a pusessem a margem da tragédia, retomaria a alegria intensa que a houvera deixado por filhos seus terem, inteiros, passado para o lado de lá da rua, enquanto aquele, talvez distraído, talvez por ter perdido segundos para colher no asfalto restos de revistas que talvez o interessassem, fosse colhido por máquinas incontidas e brutas. Alguém teria que chorar mais tarde, ela ficaria solidária com esta dor.
Entraram na costureira. Por vezes uma fazenda mais vistosa conseguia ventilar 1 pouco seu espírito, mas em seguida, como uma tempestade que estivesse para cair, vinha a ideia do pequeno morto que talvez não fosse 1 desconhecido e numa associação via seus filhos brigões, discutindo e atravessando ruas.
A cunhada nada encomendou. A de verde, distraidamente escolheu 1 vestido. Ao se retirarem, uma nova freguesa cumprimentava a costureira. Curiosa, queria saber o motivo daquele comício diante de sua porta.
- Ah! Sim, respondeu solícita a costureira, com seu leve sotaque europeu. O ônibus colheu uma criancinha que voltava da escola.
A cunhada e a de verde recuaram 1 degrau da escada que desciam, voltaram-se e encararam-na.
- Era 1 pretinho - concluiu, com amabilidade, a costureira. Sua voz, embora sensível, traia certa despreocupação, talvez apenas comercial.
A de verde agora era quem conduzia a cunhada pelo braço. Ela parecia pesar, talvez por causa do seu grande nariz, que agora pendia para baixo.
Na testa da de verde havia permanecido uma rusga de tristeza. Se fosse 1 filho seu que houvesse morrido estaria triste. Mas como fora 1 filho preto dos outros que morrera, continuava triste por ter ficado alegre.