Sonia Lins
17 dias havia que não se alimentava Menelêu. Fartara-se e inúteis eram as idas de sua mulher ao cercado das galinhas. Voltava com os bolsos cheios, mas vazia continuava a barriga de Menelêu. Em torno de seus olhos crescia 1 círculo a medida que dias passavam.
Meneléa encantou-se com o jejum do marido, mas o tempo, desgastando-lhe a alegria, transformou-a em preocupação, estava, portanto ,doente Menelêu. Chamaria médico, mas isto requereria tempo e dinheiro. Menelêu não iria só, as pernas já não mais o aguentavam. Iriam ambos e criação ficava sem ter quem olhasse por ela. Correu Meneléa atrás de galinha. Pensou na hipótese de sacrificar outra ave. Decidiu-se pela mutilação, arrancando a asa de uma franga. Na véspera deixara o galo perneta. Na horta, canteiros protegiam couves de talos altos. Livrou-os de piolhos e levou alguns para a cozinha onde prepararia sopa de fubá.
O dedo enfiado numa fenda do tijolo, Menelêu piscava latejando círculos que lhe contornavam olhos. Vez por outra conseguia pegar uma formiga amarela. Deixava-a subir pela mão escalando ponta de dedos cobertas de cabelo. Examinava-lhe os movimentos e os tons claros do ventre. Ergueu-a à altura da testa e jogou-a sobre a língua ressequida.
Fervia o fubá na sopa. Menelêu afastou-se procurando o catre. Antes de acompanhá-lo, Meneléa tomou o que havia sido preparado para ele e seu pescoço sacudiu-se em movimentos verticais. Com as costas das mãos limpou a boca e soltou o cabelo para dormir.
Deixando de comer, Menelêu fez com que o catre ficasse folgado para ambos. Os círculos em volta dos olhos dele já haviam dilatado sua circunferência. Aí alteara-se a pele, lembrando 1 cogumelo de teto baixo. E esses 2 cogumelos velavam-lhe o sono enquanto pálpebras ofegavam sobre olhos voltados para dentro, como tampas de panelas que se erguessem dado a fervura dos pensamentos.
Meneléa desprendeu os membros sobre o lençol. Os cabelos postaram-se sob o amarelado do corpo como uma sombra de palmeira e seu ressoar encheu o quarto com 1 ruído de cachoeira.
Moldando-lhe pensamentos, erguiam-se e abaixavam-se as tampas dos olhos de Menelêu. 5 luas havia que uma dor impedira-o de comer. Calçara botinas para que os pés se mantivessem secos e dirigira-se onde estava a vaca. Tomaria uma caneca de leite, mas depois que seus dedos o extraíram do úbere, recusou-se a ingeri-lo. Cuspiu e fez como o cachorro, deitou-se e jejuou, esperando que lhe passasse o mal. Realmente, depois de 7 dias não mais enjoava, mas não lhe voltava a antiga ganância. Olhava linguiças passando sob processo de defumação em cima da cabeça de Meneléa que cozinhava. Matou 1 porco a procura de torresmos. Quando colocados no seu prato já não mais os desejava, saía da cozinha e sentado na porta deixava que o sol lhe clareasse mais o remendo das calças: angu com quiabo costumava ser bom. Comera cuscuz, cheirava a estrume. Jatobá já deixara bigode amarelo em redor de sua boca, 1 prato de macarrão era 1 monte de minhocas que dormiam. Águas tinha enchido o campo das goiabas, só podia ser a maleita que voltava, mas o corpo desta vez não tremera e quando lhe perguntavam pela saúde, dizia-se malsão.
Meneléa não sabia. 5 luas havia que Menelêu não comia, na certa não sabia contar. Hoje comera uma formiga. Sentia no céu da boca a cócega que suas patas faziam e tornou a escutar-lhe o estalo quando a comprimiu com a língua.
O ressonar de Meneléa fazia estremecer sua camisa de baixo. Menelêu ergueu-se da cama e seus artelhos pousaram numa camada de poeira que havia sobre os tijolos. Encaminhou-se para a cozinha, acendendo o lampião. 1 fio de baba abria caminho entre os pelos da cavanhaque. Pôs-se de bruços e formigas lhe subiam pela rampa da língua até a garganta e Menelêu degluti-as com ruídos jaboticabáveis. Forças lhe encheram os músculos e cores lhe voltaram. O antigo calor fazia com que ele acordasse Meneléa durante a noite. Ela estranhava aquele homem que não comia a quem o vigor havia voltado e sem querer preocupar-se atribuía-o as frutas e raízes que ele triturasse nas matas.
Menelêu ferrava o cavalo e quando na vila perguntavam por sua saúde dizia-se bonzeiro. Com a espora picava o ventre do animal sem pensar nas veias cheias de sangue que os animais têm na barriga. Bebia cachaça, Menelêu?
Menelêu bebia não. Parava na venda para levar chita para Meneléa sorrir. E quando voltava à cozinha encontrava-a a mastigar, negava-se a jantar. Tinha comido no caminho. Na verdade encontrara 2 formigueiros e apeara-se do cavalo para sorvê-los. Meneléa notava ao lavar-lhe as vestes 1 odor estranho. Tornara-se ativo, cercara as galinhas, engordara porcos e trouxera da venda uma máquina de moer. Enchia-a de prazer e, no entanto, não comia, iriam economizar, mas recrudesceu o mal de Menelêu.
Meneléa via o homem que era dela sentar-se na cama todas as manhã e tornar a deitar-se. Ferventava ervas, misturando-lhes pelo de gato e umbigo de recém-nascido. Os círculos em torno dos olhos de Menelêu escureceram, apertando-lhe o olhar. Já não tentava deixar o leito. Era a mulher que ia às compras e junto com o pó de café uma garrafa de cachaça trazia também.
Menelêu tinha a língua branca e das formigas tomara repugnância.
Meneléa chegara cansada e antes de esvaziar na mesa o saco de provisões sentou-se na cama para livrar-se das botinas. Dormitando, lá estava Menelêu.
Tirou o vestido melhor no qual não se reconhecia. A camisa compôs-lhe o busto que se dissolveu entre os franzidos. Eram como 1 par de meia usado. Em contraste com as rugas que lhe listavam a testa, havia o canteiro de cabelos que os jorrava para baixo como crina, todos pretos e quando ela se sentava era preciso cuidado para não ser sobre eles o que a impediria então de baixar a cabeça.
Meneléa verificou que Menelêu dormia e com os pés doloridos pela botina, desceu os degraus que separavam a cozinha do quarto. Com o pé enxotou uma formiga que tentava alcançar-lhe o tornozelo. Puxou a corda que prendia a boca do saco que trouxera e batatas e cebolas começaram a rolar. No ar havia 1 cheiro da terra da vila que ficara a uma distância de 14 léguas. Acocorou-se Meneléa e começou a beber. Cuidaria de dar a Menelêu chá de unha de morcego. Quando quis erguer-se o corpo já não mais queria obedecê-la. Encontrou a cama e largou-se sobre a palha do colchão. Fedia o corpo de Menelêu e protegendo o nariz com a mão, adormeceu Meneléa.
O colchão de palha estalava a cada respiração sua e o sono de Menelêu que era arredio, deixou-o desperto. O bigode havia comido toda a boca sua. E se ele fosse transparente, Menelêu, poder-se-ia ver bolhas de ar se locomovendo, escondendo-se por detrás de vísceras, procurando roteiros até conseguirem escapar através da laringe.
Menelêu sentou-se na cama, as pernas dobradas em X. Os olhos muitas vezes circundados estavam postos nas pernas de Meneléa. Nos tornozelos reparou nas contusões provocadas pelo couro das botinas que a pouco ela retirara e a forma de ambos, salientes e redondos, lembrou a ele maçanetas de portas. Teve vontade de torcê-las. As tíbias de Meneléa pareciam apartadas da carne das pernas e a junção do braço no ombro tinha um encaixe como o das aves. Subia do seu corpo 1 ruído. Era como se todos os poros roncassem cada um por sua vez. Menelêu sentiu a boca encher-se d’agua. Levantou e o peso dos miolos balançou-lhe dentro da cabeça. Seu dedo do pé que o não calçar permitira crescer mais que o dos outros, esbarrou no frio de 1 objeto debaixo da cama. Por entre as tábuas da janela Menelêu foi olhar a noite. Não havia estrelas, antes parecia que 1 guarda-chuva fora aberto sobre o mundo, separando-o do céu. Voltou-se e ajoelhou-se ao lado de Meneléa. As mãos começaram por acariciar-lhe os cabelos, retorcendo-os e com eles apertou-lhe o pescoço. 1 soluço partiu da boca de Meneléa atingindo-lhe o rosto.
Menelêu continuava a acaricia-la, os dedos palpavam-na apetecendo-lhe a carne. Retirou a faca do seu bolso de traz e com ela efetuou-lhe no pescoço uma sangria. O sangue coloriu o vaso que foi puxado debaixo da cama e como não parasse foi preciso que Menelêu fosse à cata de panelas. Seu corpo emagrecido tinha adquirido um impulso extra. Destacou todos os membros de Meneléa de suas articulações, salgou-os, dividiu-os pondo-os a ferventar. Do bigode que lhe guardava a boca começou a escorrer baba. Vinha-lhe a fome, incontida. A fumaça escapava sob as tampas das panelas, subia pelo nariz de Menelêu e açoitava as linguiças, defumando-as. A porta fora fechada e Menelêu se assustava com o choro do cachorro que arranhava as tábuas com as unhas. Foi atrás da colher de pau que só Meneléa sabia onde guardar e achando-a, revolveu as carnes que já se desprendiam dos ossos. Encheu uma vasilha o que fez com que caíssem partículas do caldo sobre o chão da cozinha. Os tijolos sugavam-nas emitindo ruídos e bolhas de ar.
Menelêu encheu a boca e as bochechas insufladas faziam movimento de trituração interrompido pelo abaixar e levantar da glote enquanto engolia. Formigamarelas contornavam os pingos do caldo que caia e apanhavam entre as antenas o que de sólido podiam colher. A aranha no meio da teia, piscava pálpebras atentas o que fazia tremer os fios a sua volta como se ela houvesse tecido 1 coração que pulsasse, e engolia Menelêu enquanto lá fora o cachorro sossegava.
Como uma locomotiva, devagar, punha-se a andar o tubo digestivo de Menelêu.