Sonia Lins
Heitor recostou-se na poltrona e lançou um olhar para a sala onde estavam as mulheres. Era esta a maneira de receber dos Pacheco: homens de um lado, mulheres de outro. Faltava apenas a seta indicando o caminho a tomar, como acontece na porta dos toaletes públicos. Seus olhos pequenos e claros brilharam; deixou que uma pausa precedesse as gargalhadas explodidas e recomeçou em voz baixa:
- Aconteceu-me uma no gênero. Havia meses que não me interessava por mulheres. Louras, morenas, magras e gordas, eram para mim o mesmo que homens. Uma manhã, ao chegar ao edifício onde trabalho, dei com o elevador parado. Começo a subir os degraus em caracol que me levariam ao nono, onde tenho a minha sala. Já estava no quinto andar e não sentira cansaço algum. Foi aí que deparei com uma moça que subia sem sapatos. Moderei minha marcha. Pus os olhos nos calcanhares, adivinhei-os macios. Procurei-lhe as pernas e perdi-me na maneira com que os músculos se salientavam, quando a ponta do pé pisava sempre adiante, o cimento frio dos degraus. Levantei os olhos: sob a saia justas como 2 coelhinhos brancos, os quadris se retorciam mecanicamente, a maneira de pedais de bicicleta. Segui-a e quando dei por mim, estava no décimo. Desci correndo até o nono e entrei no escritório. Não consegui trabalhar e fumando cigarros após cigarros pensava naqueles quadris. Era o apelo semafórico do sexo. Deixei a porta aberta e esperei-a descer. À tarde, ei-la que surge com uma safra de pessoas que desciam a escada. Era loura e não estava descalça, sorriu-me e vi seu busto alto que esgarçava a malha da blusa. Bati a porta do meu escritório e desci. No oitavo dei conta do meu nervosismo, no sétimo havia me dominado. Aproximei-me dela no sexto, no quinto soube-lhe o endereço, o telefone no terceiro e no térreo convidei-a para jantar. Fomos à Minhota. Só lá comi arroz com polvo como comi em Portugal. Bebemos. Falávamos mais do que comíamos e ríamos mais do que falávamos. Sugeri que fôssemos a minha casa. Lá sentei-a sobre o sofá azul que todos vocês conhecem (e algumas das senhoras também, pensou, olhando de esguelha para a outra sala) e foram trocadas as primeiras carícias. Perguntou-me onde era o toalete. De volta trazia descido o zíper da saia justa. Ia soltá-los, enfim, os coelhinhos brancos, e eu os veria sob a transparência de suas peças íntimas. Foi então que verifiquei que ambos estávamos mais sóbrios do que esperávamos. Comecei a sentir-me como um molho de maionese que depois de bem solidificado começa a sentir nas entranhas uma terrível tendência para se liquefazer. Pretextei uma violenta dor de cabeça e disse-lhe que iria a farmácia. Pelo caminho lembrei-me do nome de 3 injeções estimulantes as quais o farmacêutico aplicou sucessivamente nas minhas nádegas. Voltei e encontrei-a adormecida no quarto, os braços soltos sobre a cabeleira livre, joelhos a mostra e seios arfando. Olhei-a. Para acordá-la, esperaria que o desejo chegasse impetuoso, como um trem que mal parasse numa estação; quando vi, o dia amanhecia. Ela se levantou, entreguei-lhe qualquer coisa para que se fosse e deixou-me no quarto com seu desprezo enchendo-o como fumaça. Enchi a banheira e lá mergulhei meus membros esquálidos e cabeludos. Peguei o sabão para livrar-me das lembranças e ao conduzir a sua espuma sinto no pulso um volume estranho. Sobre ele a pela aparentava a mesma coloração de sempre, era um quisto, portanto. Já o tinha antes ou nascera-me ontem? Como uma consciência culpada aquele me acompanhava, lembrando-me meu insucesso. Tampava-o para que outros não o vissem e não soubessem o seu significado. Passei a beliscá-lo, pois preferia-o como câncer a tê-lo como lembrete. E o pensamento que talvez um dia seria lastimado pelos outros, acariciado pelos parentes, perdoado na extrema unção, acomodava-me. Cheguei a esquecê-lo e já cantava pela manhã no chuveiro. Um dia os dedos da minha mão direita procuraram a corda do relógio de pulso, torceram-na até torna-la rija, e procuraram familiarmente o volume do quisto. Arregacei a manga da camisa, sumira. Inexplicavelmente passei a ser mais solicitado pelas mulheres, a melhor compreendê-las e melhor apreciá-las de perto. Não sem uma sombra de inquietação, Heitor coçou seu punho esquerdo. Seus olhos pequenos e claros procuravam na outra sala as pernas cruzadas das senhoras, que conversavam sobre homens.