Reforma

Sonia Lins

Uma martelo e uma foice, um martelo e uma foice, um martelo e uma foice, dissera o chefe com sua voz de barítono, recordava Emílio. E daí? Ah! Que todos precisavam trabalhar, que alguma coisa fizessem. Não bastava a sabotagem que discretamente ele praticara ontem? Pelo menos 5 vezes ele parara o ascensor interrompendo o sobe e desce dos milionários também miliardários de banhas, que lotavam perenemente a cabine de aço do elevador que ele comandava. Vira-os humildes e arquejantes, gotas de suor na calva e perdoou-lhes os grandes automóveis estacionados que ele de um relance avistava quando o elevador pressuroso baixava até o térreo. Ele estava pondo a causa a perder com o seu grande coração que não consentia em ver sofrer um passarinho. Foi com esse problema de consciência que esta noite se deitou Emílio. Na manhã seguinte uma ideia lhe enchia a cabeça: fazendo uma reforma ortográfica para o partido não iria contra os princípios que lhe incutira sua mãe. Enquanto que com a gilete fazia a barba, articulava mentalmente, enchendo as bochechas, um novo dicionário. As letras deixariam de ser humildes sinais gráficos e atuariam como sílabas, por exemplo, a letra K. Riscada do nosso alfabeto e, no entanto, aproveitabilíssima! KBAÇA – KXAÇA – KDRA – KBLO – KVRA , em vez de cabaça, cachaça, cadeira, cabelo e caveira. E cadete, já pensou? KDT – fenomenal. Quanta tinta economizada, espaço para ser aproveitado, papel poupado. As listras azuis do seu pijama amarelo riam para ele quando Emílio o substituiu por um terno de caroá. No trabalho trocá-lo-ia pelo uniforme KK! (caqui), viva o K!

O elevador funcionou normalmente aquele dia. Bem disposto Emílio a todos cumprimentava e era bem correspondido. Nas subidas e descidas do aparelho palavras sujeitas a reforma emergiam-lhe na cabeça e ratificadas escorregavam-lhe livres pelas cavidades das suas orelhas. Seu estado de espírito era feérico. Descobriu até um vocábulo inglês que seria atingido pela transformação. TILBURY x ~BURY. Pois o til era ou não era um sinal fonético? Um repelão do elevador tirou-o de suas cismas e Emílio lembrou-se de que teria de se encontrar a noite com Isaura. E para lá se encaminhou depois do jantar. Encontrou-a no lugar combinado, mãos nos bolsos da saia, rugas de aborrecimento na testa e uma bala de chocolate na boca. Viu a cor quando passava como um pêndulo de bochecha para bochecha.

Minha KRA menina, começou Emílio, (não, não posso confundir trabalho com amor) e continuou:  KERIDA? KORAÇÃO? KTOLIK, KDLA (ora essa!).

No fundo de seus olhos verdes Isaura mediu-lhe com impaciência. Pensou: Já ando cheia, não posso mais. Um pensamento travesso tornou a dar-lhe brilho aos olhos: só o aturo enquanto estiver chupando esta bala, e o caldo adocicado do chocolate passava-lhe pela garganta.

E como a história está ficando muito grande e como Isaura não teve sequer a força de caráter para executar o que havia deliberado, passou o caramelo da esquerda para a direita e disse:

Amanhã não compareças, tá bom? Já cansei de bestar contigo.

O quê? Perguntou-lhe Emílio. Isto é, digo apenas Q?

Cretino!

Isaura virou-lhe as costas e afastou-se. Não era bonita. Emílio viu seus cabelos soltos que adejavam no ar. Seu andar era leve e saltitante, já o notara antes?

Ser escorraçado como um cão, aliás, como um K, resmungou ele. Queria estar triste, mas a nova fonética não deixava.

Haveria de achar uma namorada que se chamasse ODT.